Entrevista: Ianaê Regina, cantora e compositora

Entrevista: Ianaê Regina, cantora e compositora


1. Ianaê, para começar, conte-nos sobre a inspiração por trás do álbum “AFROGLOW” e como esse projeto representa seu processo de autoconhecimento.

Querer enxergar a vida como um processo de nascimento e renascimento foi o impulso para criar o AFROGLOW. Nascer é um início, que precisa de outro alguém para acontecer e renascer não decreta um fim absoluto, mas sim, outro início. 

Procurar por esse ponto de vista e afirmá-lo, principalmente ao se tratar da vida da população preta brasileira, foi um desafio para mim porque percebi que, para falar sobre a comunidade, era preciso falar sobre as próprias vulnerabilidades. Por sermos colocados constantemente em posição de exemplo de força descomunal e resistência, acabamos por ser desumanizados, e, consequentemente, acabamos nos desumanizando também.
Encontrar essa humanização em mim é o que melhor representa o meu processo dentro do AFROGLOW. Esse projeto me salvou em momentos difíceis pois me deixou mais atenta. Atenta à quando eu estava me isolando da comunidade, atenta à quando eu estava esquecendo da minha potência, do meu brilho. Aprender a preservar essa humanização e ser leal à ela me trouxe autoconhecimento que ainda não tinha experienciado. Nasci e renasci.

2. Sabemos que o videoclipe “Lina e o Oceano” foi inspirado em filmes do diretor Cristopher Nolan. Como essa inspiração se encaixa na narrativa do álbum?

Os filmes do Nolan sempre me trouxeram uma vibe intrigante, de suspense, principalmente por conta das trilhas sonoras feitas pelo Hans Zimmer e como essas sonoridades harmonizam com as cores em cena. Antes da concepção musical do álbum, eu sabia que queria trazer pra identidade dele a cor roxa e seus subtons, pois é um álbum onde falo sobre nascimento e renascimento e a cor roxa, pelo seu significado de processo de transmutação, se alinha com a identidade composicional e sonora do álbum. 

3. As faixas do álbum abordam temas importantes do movimento negro, como saúde pública, hiperssexualização do homem negro e apropriação cultural. Como esses tópicos influenciaram sua música e composições?

Ter vivências em primeira pessoa e também vivenciar como observadora e ouvinte atenta foram os primeiros passos para eu conseguir abordar esses temas dentro do meu trabalho e tratar disso requer bastante sensibilidade e responsabilidade, não só pelo outro mas por si próprio também. Muitas das composições surgiram a partir de conversas marcantes que tive ao longo da minha vida adulta com amigues negres, a partir de observações de como a minha família era (e é) tratada por pessoas brancas e a partir da minha necessidade de mudança do meu próprio discurso. Perceber que eu poderia abordar tais questões de maneira artística, de certa forma, me faz reconfigurar um padrão de narrativa: abordar o autocuidado como, também, uma forma de militância é evidenciar a saúde pública como ação ativa; abordar a humanização do homem preto e ajudá-lo a lembrar do seu direito ao afeto é evidenciar a possibilidade de um viver não objetificado; satirizar a postura de quebrada advinda de quem não é pertencente é evidenciar que permanecemos atentes e segures de quem somos.

4. Você mencionou a prática de kemetic yoga como parte do projeto. Pode nos explicar como essa forma de yoga se conecta à sua identidade e ao álbum?

A Kemetic Yoga, por ser uma prática de base africana, nos conduz à relembrarmos e nos conectarmos com as nossas raízes. Entendo que é preciso saber de onde viemos para sabermos aonde vamos. O meu trabalho se manifesta da mesma maneira como o meu entendimento de vida se manifesta: se trata de uma jornada de autorreconhecimento e de reconhecimento do próximo e a compreensão de que o individual e o coletivo não são formas de existência opostas, mas, sim, complementares. Esse complemento é o que nos resgata, nos aproximando cada vez mais da filosofia de que o futuro é ancestral.

5. O processo criativo por trás do álbum parece ter sido uma jornada emocional. Como você lidou com os desafios criativos durante esse período?

Para poder lidar de forma saudável com meus bloqueios tive de aprender primeiro o que não fazer durante esses momentos. Muitas vezes, dentro das dificuldades criativas eu me esforçava mais ainda pra poder gerar alguma coisa, pra manter a constância. Esse receio de ficar pra trás me consumia bastante e minha forma de tentar escapar disso era trabalhando mais, ficando mais tempo acordada, passando menos tempo com os meus amigos… até que me dei conta de que o que eu estava fazendo era negligenciar o meu descanso e minha vida social. Criatividade não é algo que se possa forçar, é algo que podemos tratar com disciplina, mas sem a rigorosidade que nos desumaniza. Reconfigurar o meu comportamento, me permitindo soltar as preocupações e descansar, me permitindo sair pra encontrar as pessoas que amo, foi o que me trouxe maior desenvoltura criativa, além de me ensinar sobre autopreservação e autocompaixão.

8. AFROGLOW aborda questões de saúde pública. Qual é sua opinião sobre o acesso à saúde no Brasil, especialmente para comunidades negras?

A população preta sempre foi negligenciada ao se tratar de ações constitucionais. Sabemos que o racismo institucional e estrutural são sustentados pela perpetuação do pensamento escravagista brasileiro e que a marginalização, tanto educacional quanto geográfica da população negra é uma tecnologia e estratégia de manutenção hierárquica em que “o de cima, sobe e o de baixo, desce”. Ao colocar as comunidades negras em espaços onde o saneamento básico é escasso, onde a economia mantém ativa a insegurança alimentar, onde o lazer não é uma possibilidade, onde a preservação e o incentivo à cultura não são estimulados, o Brasil acaba por sustentar a ideia de que a facilidade de acesso à saúde é privilégio quando na verdade, não é. A facilidade de acesso à saúde é um direito que nos foi negado.

9. Conte-nos sobre uma experiência engraçada ou memorável durante a criação do álbum.

Lina e o Oceano não ia entrar no álbum.
Eu tinha escrito ela, gravado em casa o vocal, só pra deixar de registro e guardado no drive. Antes de iniciarmos o processo de produção, a Bianca Rhoden (nossa produtora musical) me perguntou o que eu tinha de arquivos extras, se eu tinha mais composições além das quais eu tinha mostrado até então. Eu lembrava de Lina e o Oceano mas sentia muita vergonha de apresentar pois nela eu sentia que dava tudo de mim… toda a minha emotividade seria posta à mesa, toda a minha vulnerabilidade seria exposta. Até que eu tomei coragem e apresentei Lina. Lembro da Bianca ficar emocionada e dizer “Essa tem que ir pro álbum!” e da Erica Silva dizendo, empolgada, “Essa música precisa de violino! De cello! Ela merece!”.

10. Se você pudesse colaborar com qualquer artista, vivo ou falecido, em uma faixa do seu álbum, quem seria e por quê?

Certamente eu cantaria Rotina com a Tássia Reis. A Tássia tem uma característica jazzística nos seus arranjos e na sua forma de cantar que me deixam hipnotizada e Rotina, por seguir uma sonoridade de suspense, seria muito enriquecida pela interpretação da Tássia.

marramaqueadmin