Entrevista: Heitor Zen, escritor

Entrevista: Heitor Zen, escritor

1. Heitor, conte-nos sobre a inspiração por trás de “Vórtex do Silêncio”. Como o contexto da pandemia influenciou a criação deste mundo ficcional?

O Vórtex é um produto de vários fatores diferentes. Há tempos eu vinha querendo criar um universo fantástico à lá Tolkien, mas em que cada nação fosse dominada por uma espécie diferente de mortos-vivos. Então, durante a pandemia, eu li alguns livros que me fizeram sentir que estava na hora de movimentar essa premissa. 

De “O Silmarillion” eu emprestei a compulsão tolkiana pela evolução política e social ao longo de extensos períodos de tempo. Mas foi depois de ler o conto “The lady in the house of love”, no livro “Bloody chamber”, de Angela Carter, que eu não pude mais me conter. Toda a atmosfera do conto me contaminou de tal forma que eu precisava criar personagens que vibrassem naquela mesma frequência. 

Quanto ao contexto da pandemia, embora não seja diretamente refletido no livro, serviu como um catalisador para o enredo. A história se passa 2500 anos no futuro, e nos primeiros trezentos anos, a humanidade enfrenta uma série de pandemias causadas por um vírus alienígena inadvertidamente trazido à Terra. Esse cenário culmina na derrocada da espécie humana e na ascensão dos mortos-vivos. 

2. Em “Vórtex do Silêncio”, vemos uma Terra dominada por mortos-vivos. Como você desenvolveu essa premissa e como ela se relaciona com questões contemporâneas?

O ponto central aqui era questionar a hegemonia humana no mundo. O quanto tomamos por garantida uma posição que é no máximo precária? Quantas e quais crises são necessárias para que nossa civilização entre em colapso? Como o ser humano se comportaria em um mundo no qual fosse a presa ideal, e não o predador dominante?

Para responder a essas perguntas, eu pesquisei muito sobre o colapso de grandes impérios, com foco nos principais gatilhos desencadeadores dos eventos que viriam causar sua queda. E percebi que quase sempre três constantes estão presentes nesses episódios: o contato ou o conflito com outra civilização; estresse climático; doenças. Foram esses três pontos que decidi explorar na linha do tempo que daria origem ao livro.

3. O protagonista, Goya, é um mago humano ilusionista. Que desafios ele enfrenta ao longo da história e como isso reflete em suas escolhas?

Goya começa o livro como alguém que se sente muito desconfortável no próprio corpo. Ele assume outras identidades porque pode e precisa delas. Conforme a história avança, no entanto, ele acaba descobrindo que outras pessoas podem se conectar genuinamente com o Goya de verdade, despido de ilusões. Então por que não ele mesmo?  Essa jornada o leva a uma espécie de reconciliação entre sua habilidade ilusionista, que se aprimora, e seu novo gosto pela autenticidade. Ele se torna de certa forma mais humano à medida que aprende a se aceitar e a confiar em sua própria identidade, mesmo quando isso significa abandonar as ilusões que o confortavam anteriormente.

4. O relacionamento entre Goya e Yuki é central para a trama. Como você construiu esse romance em meio ao cenário sombrio do livro?

O romance entre os dois foi criado justamente como contraposição ao restante do enredo. Poderia falar que o amor do casal funciona como um ponto de luz em meio às trevas do mundo, mas Yuki é a própria encarnação da escuridão. Então o arco dos dois está contaminado por essa atmosfera sombria, eles refletem os problemas do mundo em uma escala microscópica, por assim dizer. É um romance que nasce equivocado pelas ilusões de Goya, proibido pelas convenções sociais tanto do povo de Yuki quanto de Goya, e inviável de evoluir em um futuro no qual o amor já não tem tanta importância. Mas eu queria que apesar disso tudo, o leitor pudesse perceber que se não fosse pelo romance entre os dois, todo o restante teria dado errado.

5. O mapa criado por Brendo Francis apresenta um mundo de fantasia único em “Vórtex do Silêncio”. Como esse mapa contribui para a imersão dos leitores na história?

A história se passa na América do Sul, quase que inteiramente no Brasil, mas tanto tempo no futuro que os personagens nem sabem que naquele lugar um país com o nome inspirado em brasas já existiu. Então a utilização de um mapa logo no começo do livro veio como um artificio para auxiliar o leitor em notar que aquele continente tem um formato muito familiar…

6. Em seu livro, você menciona que nada é o que parece ser. Como você trabalhou essa temática ao longo da narrativa e qual mensagem espera transmitir aos leitores?

Quase todos os meus personagens possuem algum tipo de habilidade ilusionista, em especial o protagonista, Goya. Como autor homossexual, essa temática do “esconder-se” para sobreviver em meio a um mundo perigoso sempre me foi muito sensível, então eu queria explorá-la de forma mais literal nessa história. Já do ponto de vista narrativo, o engano proporciona diversos “plot twists”, o que me atrai bastante numa narrativa. 

7. Heitor, você mencionou que o livro é uma história sobre pertencimento. Como esse tema se desenvolve na jornada de Goya e Yuki?

Yuki é introduzido no livro como um exilado, separado de seu povo e aprisionado por outra espécie. Essa condição inicial de alienação e desconexão define sua busca por pertencimento ao longo da narrativa. Por outro lado, Goya, ao resgatar Yuki, também se afasta de sua própria comunidade, desafiando as normas e os laços estabelecidos.

As trajetórias de ambos se entrelaçam em uma busca por aceitação e pertencimento. À medida que enfrentam desafios juntos, eles são confrontados com suas próprias escolhas e preconceitos, percebendo que muitas vezes o sentimento de rejeição vem mais de dentro do que de fora.

Assim, a jornada de Goya e Yuki é marcada por uma dualidade: enquanto fogem das restrições impostas por suas respectivas comunidades, encontram um senso de pertencimento e conexão um no outro. É somente através desse vínculo que começam a confrontar suas próprias inseguranças e a considerar a possibilidade de reconciliação com suas origens.

8. Como foi o processo de revisão do romance e como você equilibrou a manutenção da essência da história com possíveis aprimoramentos?

Um livro é sempre uma experiência coletiva. A escrita é individual, mas a reescrita é plural, seja porque levamos em conta a leitura de outras pessoas, seja porque o escritor que reescreve já não é o mesmo que escreveu. 

Eu consigo dividir o Vórtex em três grandes versões, mas as revisões foram em número muito maior do que isso. O principal desafio da reescrita foi encontrar uma voz própria para o Yuki, porque na primeira versão ele soava muito similar ao Goya. O enredo, por outro lado, sempre se manteve basicamente o mesmo. Então manter a essência da história nunca foi um grande desafio, a questão era mais de como contar essa história.

9. Além de escritor, você é funcionário público e possui formação em direito. Como essas diferentes áreas de conhecimento influenciaram sua escrita?

Na verdade, a influência do Direito é algo que estou constantemente tentando extirpar dos meus textos literários. A linguagem jurídica é ao mesmo tempo objetiva e labiríntica demais, e acaba atrapalhando a prosa. Mas o Direito também traz um grau de sistematização que é muito útil ao planejamento de obras extensas, como o Vórtex.

10. Para finalizar, que conselho você daria para escritores aspirantes que desejam criar mundos ficcionais tão ricos quanto o de “Vórtex do Silêncio”?
Não sei se estou em posição de dar conselhos a ninguém, mas para quem pretende criar mundos ficcionais, eu recomendo muito planejamento antes de começar a escrever. Eu arrisco falar que levei o mesmo tempo criando o mundo que o tempo que levei escrevendo a primeira versão do livro.

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