Entrevista: Flávia Moraes, professora
1. Flavia, pode nos contar mais sobre sua metodologia inovadora para avaliar as competências socioemocionais através de pares?
A avaliação das competências socioemocionais estão tradicionalmente vinculadas ao preenchimento de questionários onde o sujeito avalia a si próprio. No entanto, é muito extensa a literatura sobre vieses mentais. Não é tão simples assim termos uma visão verdadeiramente isenta sobre nós mesmos. Por sua vez, nossos pares com quem trabalhamos juntos na construção de um projeto ou solução de problema definitivamente estão em condições privilegiadas para dizer se aceitamos bem críticas, se somos bons ouvintes, se somos colaborativos entre outras competências socioemocionais de grande relevância para a vida pessoal e profissional de um indivíduo.
2. Quais são as principais vantagens de usar a tecnologia e a análise de dados para avaliar as Soft Skills em comparação com os métodos tradicionais?
Nos métodos tradicionais os indivíduos respondem perguntas sobre si mesmos. Ainda que do ponto de vista estatístico essas perguntas sejam calibradas de modo a testar um certo nível de consistência das respostas, ainda assim estamos falando de uma medida que é aferida a partir da compreensão de um único avaliador que é o próprio sujeito. Por sua vez, quando usamos a tecnologia para coletar as respostas de diferentes avaliadores sobre os comportamentos de um determinado sujeito, existe uma possibilidade de melhora significativa na qualidade dessa medida como indicador das competências socioemocionais a partir da análise dos dados.
3. Como funciona o aplicativo desenvolvido para avaliar as competências socioemocionais em crianças em idade escolar?
Em idade escolar, é importante trazer os professores para o processo por dois motivos. Primeiro, é esperado que o nível de maturidade de crianças em idade escolar seja menor quando comparado a alunos no ensino superior. Segundo, os professores de alunos em idade escolar costumam ter um contato mais próximo e uma visão mais profunda dos seus alunos do que professores universitários. Nesse sentido, é interessante que a avaliação socioemocional de alunos em idade escolar seja a consolidação dos olhares do professor de Matemática, de História, de Educação Física, Ciências, Artes, Música etc. Enfim, mais uma vez, a tecnologia vai trabalhar para ao mesmo tempo entregar uma visão totalmente individualizada do aluno a partir da avaliação de diferentes professores, mas também uma avaliação da turma B do terceiro ano, de todo quarto ano, ou do Fundamental 1, por exemplo.
4. Pode compartilhar alguns exemplos práticos de como sua metodologia tem sido aplicada em escolas e universidades?
No IBMEC existem disciplinas de projetos aplicados e de projetos extensionistas em que se faz uso de metodologia baseada em projetos. Isso significa que os alunos mobilizam os conhecimentos teóricos a partir de trabalhos em grupo na construção de um projeto de forma colaborativa. Dessa forma, os alunos estão aptos ao final de cada semestre a avaliar sua própria participação no projeto e de seus pares com quem trabalharam juntos como um time. A partir da repetição desse processo ao longo de todo o curso, é possível ter uma visão bem mais completa sobre a evolução dos alunos nessas competências socioemocionais, de modo a estarem mais bem preparados para seu ingresso no mercado de trabalho.
5. Quais desafios você enfrentou ao implementar essa metodologia e como os superou?
De fato, o maior desafio não está na implementação da ferramenta em si, que é um aplicativo que permite com certa facilidade inserir os dados relacionados à cada uma das competências a serem avaliadas. O maior desafio está no engajamento dos professores. É preciso mudar a mentalidade de que a transmissão de um conhecimento teórico basta. Os avanços tecnológicos têm progredido de forma cada vez mais acelerada e o acúmulo de datas, fórmulas, teoremas, nomes etc estão disponíveis literalmente à palma da mão. Então, precisamos integrar em sala de aula todo o conhecimento acadêmico ao desenvolvimento das competências socioemocionais que serão grandes diferenciais num mundo dominado pela inteligência artificial.
6. Para pessoas que não entendem de tecnologia, como você explicaria a importância da Ciência de Dados na avaliação das Soft Skills?
O mundo mudou radicalmente com os avanços computacionais. Um celular convencional hoje é capaz de armazenar uma quantidade de informação um milhão de vezes maior que os primeiros computadores desenvolvidos em meados do século XX. Essa nova realidade transformou a maneira de fazer análises de um modo geral. Isso vale para análise de como um técnico de futebol contrata novos jogadores, tendo em vista que já temos grandes clubes europeus fazendo uso de dados para sua tomada de decisão. Vale para análise de mercado de uma empresa querendo lançar um novo produto e por que não para fazer a análise de um indivíduo a partir da avaliação de suas competências socioemocionais?
7. Existe um número mínimo de avaliadores necessário para que a metodologia funcione de forma eficaz?
É difícil estabelecer assim um número mágico que vai fazer a metodologia de avaliação baseada em dados funcionar. O que funciona de verdade nesse tipo de abordagem é a lógica de quanto mais dados melhor. Quando estamos falando da avaliação dentro de um contexto de sala de aula, seria bastante desejável duas componentes: a recorrência e a variabilidade de avaliadores. Ou seja, que a avaliação não fosse realizada uma ou duas vezes e fim. Seria muito importante que as avaliações se repetissem ao longo dos anos para que se possa ter um acompanhamento da evolução do aluno. Além disso, seria bem interessante que houvesse uma mudança nos avaliadores. Ou seja, que a cada ano ou semestre os grupos fossem diferentes e os alunos tivessem a oportunidade de ganhar um olhar a partir de novas perspectivas. Aí sim poderemos ter uma robustez maior para a formação dos diferentes perfis.
8. Como é possível garantir a imparcialidade e precisão das avaliações realizadas pelos pares?
Retomando a questão anterior, se podemos dizer que existe alguma maneira de garantir imparcialidade e precisão, essa maneira é através da geração do máximo número de dados possíveis. Só assim podemos identificar padrões claros. E até mesmo identificar pontos que merecem atenção. Imagine um aluno que sistematicamente é avaliado por seus diferentes professores ou colegas de turma ao longo dos anos como alguém que é gentil. é um bom ouvinte e bastante colaborativo com os grupos em que participou ao longo do seu percurso e, de repente, começa a apresentar avaliações bem negativas nesse sentido. Então, é o momento de tentar entender o que pode estar acontecendo com esse aluno.
9. Algumas pessoas argumentam que as Soft Skills são subjetivas e não podem ser quantificadas. O que você diria a esses críticos?
Tem gente que acha que futebol é arte também (rs). Mas uma visão mais moderna reconhece que exige técnica, força, preparo físico, além de habilidade. Resumidamente são muitas as competências necessárias para ser um grande jogador. No meu entendimento, essa interpretação vale para tudo. Precisamos desenvolver certas competências para sermos grandes atletas, músicos ou empresários. E essas competências são reais. Eu me sinto capaz de avaliar se um colega reage de maneira agressiva ou não diante de uma crítica. E se entendermos que existe uma certa subjetividade nisso, à medida que diferentes pessoas em diferentes momentos entendem da mesma forma, então me parece que deixa de ser subjetivo. Então, mais uma vez, o segredo para sairmos do campo da subjetividade está na recorrência e na variabilidade dos avaliadores na coleta dos dados que farão parte da análise das competências socioemocionais.
10. Como essa abordagem impacta a privacidade dos alunos e professores? Há preocupações com a coleta de dados pessoais?
Essa preocupação está em tudo. O cuidado no tratamento e armazenamento desses dados sobre as competências socioemocionais dos alunos deve ser rigorosamente o mesmo que o dado a todos os demais dados que a escola ou universidade detém desses alunos e professores. Em particular, seria bom que os alunos, por exemplo, não soubessem as avaliações individuais que seus pares lhes deram. Isso pode de fato gerar um mal estar e contaminar as avaliações. Idealmente, eles deveriam ter acesso apenas à média das avaliações. De preferência, que esses dados sejam sempre usados de forma positiva para apoiar o aluno e nunca depreciá-lo. Que seja um instrumento útil num conselho de classe ou numa mentoria sobre profissões.