Entrevista: Fernando Grecco, cantor e compositor
1. Fernando, como foi o processo de criação do seu novo álbum “Vir a Ser”?
Foi incomum e mais demorado por causa da pandemia, mas a sinergia com o Alê Siqueira, que co produziu foi ótima, em geral trabalhávamos as bases comigo tocando e cantando (e programando synths, baterias etc) e quando a ideia musical estava definida chamava os músicos. Por causa da pandemia o início foi lento, começamos a pre produção no final de 2019 e fizemos a primeira sessão de gravação de “Canto” em Março de 2020, antes dos bloqueios da pandemia. Daí lancei Canto e Agora em 2020 e Tempo em Março de 2021 como singles, só consegui acelerar em 2022 quando a pandemia estava mais amena, daí marquei 5 sessões de gravação em Maio e Junho de 2022 quando gravei as 10 canções restantes.
Em termos de composições, já tinha 4 ou 5 canções que fizeram parte do meu primeiro show autoral em 2018 mas que ainda não tinha gravado em estúdio (Essa, Vai, Canto, Antes da Palavra e Vida) e as demais fui compondo durante a produção e gravação do álbum, geralmente a música antes (harmonia, melodia e bases) e em seguida a letra. A maioria compus no violão, e a partir daí ia começando o processo de pré produção. Como o Alê Siqueira estava morando em Portugal, íamos trocando arquivos do Pro Tools (software de gravação e edição de áudio que usamos) e ia fazendo as gravações aqui no meu estúdio e compartilhando com ele, que fazia comentários, gravava algumas coisas por lá, e fomos assim até o final.
2. O que te inspirou a escolher o nome “Vir a Ser” para este projeto?
A inspiração de boa parte das letras veio de minhas leituras sobre filosofia e psicanálise, e uma das últimas canções que compus tinha a ver com minha vontade de falar sobre a mudança e a impermanência do ser humano e das coisas do mundo. Um dos primeiros filósofos a escrever sobre o tema foi um grego chamado Heráclito (que viveu aproximadamente em 500 a.C. – 450 a.C) e tem uma frase famosa que diz que um homem nunca atravessa 2 vezes no mesmo rio, porque quando ele faz a segunda travessia tanto ele como o rio estão diferentes. Mais recentemente no século 19 outro um filósofo que estava estudando resgatou este conceito dos pré-socráticos, e expandiu essa reflexão sobre o “estar” (geralmente ligado a impermanência, ou algo transitório) versus o “ser” (mais ligado a algo imutável) e nossa tendência é tentarmos nos definir por algo fixo (eu sou o Fernando, engenheiro, músico, paulistano, etc) mas na realidade estamos sempre mudando de alguma forma, daí a letra falando sobre “ser é estar, e viver é devir, vir a ser, se tornar”. E como esta é o primeiro álbum de canções “completo” que produzi (o anterior foi um EP de apenas 4 canções chamado Repente da Palavra de 2017) além de também ser o compositor, intérprete e músico principal em todas as canções, senti que o tema tinha totalmente a ver com meu momento, de “vir a ser” ou me tornar um produtor musical.
3. No show de lançamento, você apresenta uma diversidade de ritmos. Como você escolheu os gêneros musicais que queria explorar?
Como minha história com a música bem de muito tempo atrás (toco guitarra desde 1984 quando tinha 15 anos de idade) mas minha carreira como cancionista é mais recente, desde 2016/2017 haviam muitas formas musicais e temas que queria explorar, e os ritmos brasileiros estavam com certeza entre estas explorações, como a bossa/samba, frevo, maracatu, entre outros, mas também outros “idiomas” vindo de outras fontes como o jazz, o rap e o rock. Para mim foi uma mistura natural das minhas diversas influências.
4. Quais foram os maiores desafios ao compor as 13 canções autorais do álbum?
Creio que a parte mais difícil para mim foram as letras, não necessariamente os temas, pois sabia sobre o que queria falar, mas como comecei a escrever letras mais recentemente, a forma de abordagem e escrita ainda era algo muito novo. Ao contrário da música, composição e sonoridades eram elementos que já estava mais acostumado a trabalhar. De qualquer forma fiquei bem contente com o resultado, e me coloquei este desafio (que também foi gratificante) de fazer um disco onde eu seria o único compositor, mas também intérprete (tanto como musicista e cantor), e co-produtor. Deu trabalho mas foi muito gratificante!
5. Pode nos contar um pouco mais sobre a faixa-título “Vir a Ser” e seu significado?
Creio que já abordei este tema mais a fundo na segunda pergunta. O que posso acrescentar é que coloquei alguns elementos musicais reforçando a ideia (como a minha voz gravada ao contrário em alguns trechos da música que reforçam esta noção do ir e voltar como sendo bem diferentes, e a forma da canção que é organizada como um espelho entre a partes A (que inicia com “posso voltar..” e B (você pode tentar”…) e solo (que é feito com a harmonia da parte A repetida duas vezes), a forma da música fica como se fosse “espelhada” ABA ABA, como se fosse um palíndromo musical… Ao contrário das formas mais tradicionais que são uma parte A repetida 2x seguida de uma parte B, falando de formas de composição.
6. Como você descreveria a mistura de ritmos brasileiros e estéticas internacionais no seu álbum?
Apesar de ter uma relação com a música que sempre foi intensa e vem de muito tempo, e ter tido “fases” de curtir mais rock (no início com a guitarra), jazz (quando comecei a estudar mais profundo harmonia e improvisação) e também música brasileira (quando fui aprendendo canções e estudando mais o violão) meus gostos musicais sempre foram se expandindo para outros gêneros (desde música erudita, passando por música pop alternativa, eletrônica, entre outros) e nunca tive uma formação musical baseada em um único estilo ou gênero (que acontece com alguns músicos que se especializam no jazz, no erudito, ou em estilos brasileiros como o samba ou o forró. Desta forma esta mistura foi muito natural para mim, porque não estava “fechado” com nenhum gênero ou estilo específico, a não ser a estética da canção, que é muito ampla e permite várias abordagens diferentes, inclusive da poesia falada como no Maracatu da Verdade ou no rap que fecha o disco, chamado Inevitável Fim
7. Qual é a mensagem central que você deseja transmitir com suas letras?
Eu uso os temas escolhidos e abordagens como formas de refletir sobre a minha experiência de vida, e formas do conhecimento humano abordadas de maneira pouco usual. Me intriga que exista um sistema sociocultural e econômico vigente, e muita gente prefere viver sem se questionar sobre por que as coisas são como são. Porém tento fazer isso de maneira simples e direta, apesar de explorar temas muito complexos como o amor, a verdade, o tempo, ou a própria vida em si, tento brincar com esses temas procurando, além de fazer uma música legal e agradável, provocar o ouvinte a refletir. Em resumo creio que é propor uma forma diferente e original de pensar sobre a vida, sempre através da música e da canção…
8. Como foi a colaboração com os músicos Aline Falcão, Gustavo Sato e Danilo Moura nesse projeto?
Uma das coisas mais legais de tocar ao vivo canções produzidas em estúdio e justamente ver como outros músicos irão “interpretar” as harmonias, ritmos, e sonoridades do disco de uma forma particular e nova! Eu ouvi centenas de vezes as canções durante o processo de produção, mas tocar com esses músicos super talentosos (mas que não participaram do disco, provavelmente só porque ainda não os conhecia na época) traz um frescor e uma novidade que são super bem vindos!
9. Você menciona artistas como Milton Nascimento e Lenine como influências. Como eles impactaram seu trabalho?
Em resumo, gosto de cancionistas que tem uma abordagem mais abrangente em relação a música e sonoridades, seja o Milton, que além das composições geniais tinha aquele som maravilhoso feito pelos músicos de Minas como o Robertinho Silva e o Toninho Horta por exemplo, além do seu violão, seja o Lenine que tem também um lance rítmico com o violão e os estilos tradicionais do Nordeste como o maracatu ou o baião mais com uma leitura mais moderna. Ou seja, para além da letra e da melodia da canção, que pode ser interpretada com a voz e o violão, mas que traz uma proposta de sonoridade que abre um universo estético novo. Acho que busco algo assim! Milton e Lenine são gênios da nossa música, assim como outros que aprecio e adoro como Edu Lobo, João Bosco, Tom Jobim, João Donato, a lista é imensa. Se conseguir fazer algo que remeta ao novo universo, que use elementos que existem, mas também traga algo de novo, estarei mais do que satisfeito.
10. Quais são suas expectativas para o show no Teatro da Rotina?
Muito frio na barriga! Os shows no Sesc Taubaté na sexta e no Teatro da Rotina no Domingo serão as primeiras apresentações do repertório inteiro do “Vir a Ser”então será um passo em um mundo desconhecido e inexplorado… Adoro!
11. Olhando para trás, qual foi o momento mais marcante da sua carreira até agora?
Tive uma carreira profissional antes da música, onde também aprendi muito, mas dentro da música diria que foi a experiência da criação da produtora e selo Borandá (que faz 15 anos este ano, mas já não faço mais parte dela, que está com minha colega Gisella) e o lançamento deste álbum, “Vir a Ser” que me lança como produtor de canções.
12. Como você vê sua evolução musical desde o início da sua carreira até o lançamento de “Vir a Ser”?
Por ter seguido uma outra carreira antes da música, e mesmo dentro da música fazendo coisas diferentes (produção cultural e executiva, músico, intérprete, compositor, produtor musical), foi uma evolução nada linear, bem caótica, e acho que faz parte de minha personalidade de explorador de sonoridades e possibilidades… quero continuar assim. Provavelmente meu próximo disco será um álbum instrumental de guitarra tocando músicas de outros compositores brasileiros, mas isso é uma outra história.
13. Quais são seus planos futuros e próximos projetos após o lançamento deste álbum?
Como falei na pergunta anterior, deve ser um álbum instrumental de guitarra, tocando composições brasileiras, de compositores como Milton, Nelson Cavaquinho, Tom Jobim, Egberto Gistonti, Hermeto Pascoal, João Bosco, entre outros, mas com uma pegada e sonoridade mais moderna, e muita experimentação. Quero poder trabalhar com composições prontas para enquanto isso poder compor uma nova leva de canções para o próximo álbum deste estilo que devo ir fazendo em paralelo.
14. Algumas pessoas acreditam que a música brasileira perdeu sua essência ao se misturar com ritmos internacionais. O que você acha disso?
Acho que não existe estilo 100% original ou país que não tenha uma cultura que não se alimente e se beneficie da mistura de pessoas com origens e características diferentes. Tudo que fazemos na arte (e em outros campos do conhecimento e da cultura) tem várias origens e influências diferentes. Claro, existe um valor em se preservar um determinado estilo como era feito nas suas origens, seja no samba, no jazz, no choro ou na música erudita, mas isto é uma escolha estética, e tratar isso como uma “proibição” ou um “puritanismo” é uma limitação desnecessária.
15. Qual é a sua opinião sobre o atual cenário musical brasileiro e os desafios que os artistas independentes enfrentam?
Uma vez, ainda trabalhando na Borandá, fui me queixar do cenário da época (em 2011 acho)com uma das artistas que trabalhava conosco, que apesar de ter uma carreira consolidada precisava continuar se reinventando, e ela me disse que se até pro Beethoven era difícil, imagina pra gente! A partir deste momento parei de me queixar e sempre que me perguntam isto lembro desta história. A escolha pela música e pelas artes sempre é uma escolha por um caminho de muitos desafios, mas também muito gratificante, e chega a ser quase uma “não escolha” porque nos sentimos infelizes e incompletos se não estamos fazendo arte.
Por outro lado, o que considero muito preocupante hoje em dia é a concentração de poder nas empresas de Internet, principalmente o Google e a Meta, que ganham bilhões por ano vendendo anúncios direcionados através de informações privadas que damos a elas de graça ao navegarmos por suas redes, e a forma com a qual os algoritmos nos viciam a permanecermos mais tempo on line, e incentivam formas superficiais e imediatas de comunicação. É muita informação circulando, mas pouco conhecimento ou sabedoria. Informações falsas ou fake news são muitas vezes privilegiadas porque geram mais engajamento e ,por consequência, lucros às plataformas. Este é um problema não só para artistas, para para o mundo de uma maneira geral, é um problema que precisamos encarar e buscar alternativas pois só tende a piorar com o tempo e quanto mais estas empresas concentram poder e recursos.
16. Você acredita que a música pode ser uma ferramenta para mudanças sociais e políticas? Como isso se reflete no seu trabalho?
Sim, sem dúvida. Na realidade não acho que a música é uma “ferramenta” mas ela é uma forma de expressão que, assim como outras formas de arte, reflete o tempo e o lugar em que vivemos, e a partir daí está inserida no contexto sociocultural vigente onde mudanças podem ser operadas de maneira coletiva, mas não apenas pela música, mas sim pelas pessoas, pela comunidade como um todo, quando há um entendimento que mudanças são necessárias. A Música pode simplesmente ser um catalisador ou um dos elementos de inspiração das pessoas de um determinado local ou época.
Mas não é o único, as coisas acontecem juntas, e outras aç!oes mais diretas e objetivas são. necessárias e imprescindíveis para mudanças reais, e a música sozinha dificilmente poderá operar neste nível, é simplesmente uma forma de expressão artística, como é a dança ou as artes plásticas ou o teatro, cinema, etc. Quem opera as mudanças são as pessoas.
Creio que na minha música levanto alguns temas que considero relevantes e faço uma abordagem original que pode provocar uma reflexão, as vezes através de uma mensagem mais direta como em “Inevitável Fim” outras vezes mais subliminar ou sutil como em “Essa Vai” ou “Maracatu da Verdade” por exemplo.
17. Se você pudesse escolher qualquer artista, vivo ou morto, para colaborar em uma música, quem seria e por quê?
Muito difícil dizer… Adoraria
18. Qual é a música mais embaraçosa que você tem no seu playlist?
Não sei se entendi a pergunta, mas creio que não há muitas “embaraçosas” ou que gerem algum incômodo ou sentimento parecido para mim. O que talvez possa responder neste caso, é cantar um rap como “Inevitável Fim” que é um desabafo sobre a civilização que é capaz de inventar coisas t!ao fantásticas, mas ao mesmo tempo ainda cria e cultiva problemas sérios como as guerras, pobreza, desigualdade social, concentração de poder e destruição do meio ambiente.
Sinceramente é difícil de entender e aceitar, daí a pergunta da letra “quando nos liberaremos destes hábitos vãos, e viveremos a vida plena de amor, irmãos?”
19. Se você não fosse músico, o que acha que estaria fazendo agora?
Já fiz várias outras coisas na minha vida, sou engenheiro, trabalhei como executivo na área de comércio de informática, e até bicicletas mas creio que hoje se não estivesse trabalhando com música procuraria algum trabalho ou empreendimento na área do terceiro setor, ONGs com trabalhos sociais, energia renovável, reciclagem de lixo, agricultura sustentável entre outros nesta linha. Me incomoda o caminho que a humanidade está trilhando, e além da arte creio que estes trabalhos podem oferecer alternativas possíveis para um mundo melhor.