Entrevista: Décio Torres, escritor

1. Décio Torres Cruz, o seu livro “Histórias Roubadas” será lançado em breve. Pode nos contar um pouco mais sobre a obra e o que os leitores podem esperar dela?
O livro possui 22 contos com temas bastante diversos, tendo como mote principal de alguns deles o roubo de histórias. São contos instigantes, engraçados e divertidos, mas que também conduzem o leitor a muitas reflexões filosóficas. O escritor Lima Trindade explorou bem a relação entre os contos em seu texto de apresentação do livro e o leitor irá se deparar com algumas questões por ele apresentadas do tipo: “O que você faria se descobrisse uma parte da sua vida descrita num livro até então desconhecido por você, mas um grande sucesso de vendas e críticas? Se, numa tarde qualquer de domingo, reclinado na poltrona de um cinema, percebesse que o filme rodando na tela à sua frente, um filme premiado, retratasse justamente uma experiência muito particular sua? Ou se a peça de maior destaque no teatro da sua cidade expusesse justamente os seus segredos mais íntimos para o grande público? Ficaria feliz? Sentiria raiva? Consideraria um insulto? Uma homenagem?” Essa é apenas uma das tantas provocações que o livro lança logo na sua abertura.
Alguns dos contos apresentam tons poéticos, como “As fronteiras do encantamento” e “A lua sobre as veredas tropicais”; outros passeiam pela crônica e narrativas de viagem, como “Margô e seus sonhos postergados” e “As tias”. Uns tratam de questões históricas, filosóficas e existenciais, como “Sobre ondas e bancos de areia” e “Estradas possíveis e as trilhas não percorridas”; outros, como “Aula de português”, “A aluna deslocada e tresloucada” e “Zuleica, minha irmã” exploram o humor e a diversão em meio a discussões de temas contemporâneos e de linguagem; Mistério e aventura são encontrados em “O ladrão de histórias”, que inspirou o título, “O mistério dos jogos mentais” e “Era uma vez uma cidadezinha”. Técnicas cinematográficas são utilizadas na construção de “Um dia na periferia da vida”, que enfoca a violência urbana diária nas nossas metrópoles. A descoberta do ser e do sexo na adolescência é abordado em “A avó do Wesley” e em “O caso do psicólogo”. Um gênero híbrido de peça teatral e conto é criado em “A divina tragédia humana” e nos contos engraçados escritos sob forma de diálogos. Há, ainda, questões políticas numa história que metaforiza a criação de estados totalitários sob a perspectiva de uma criança; histórias de amor possíveis e impossíveis; jogos e apropriações da tradição literária; e brincadeiras com a metalinguagem narrativa quando um personagem se insurge contra o seu criador.
Por todas essas histórias, perpassa uma grande ironia que caracteriza a voz narrativa nas discussões sobre gênero, identidade e a existência humana. O leitor encontrará, também, uma contundente crítica aos preconceitos refletidos na moral de hábitos e costumes hipócritas vigentes em nossa sociedade, quando personagens tentam compreender o universo à sua volta na busca de um significado para o absurdo existencial que a vida às vezes nos impõe. Em vez de fornecer respostas prontas, o livro envolve o leitor com perguntas que nos acompanham até o final da leitura de cada conto, fazendo-nos refletir sobre essas questões, escolher o melhor desfecho para algumas de suas histórias, ou simplesmente, dar uma boa gargalhada. O resultado é pura reflexão, poesia e divertimento.
2. Como surgiu a inspiração para escrever um livro com histórias que exploram a relação entre realidade e ficção, originalidade e cópia?
Vivemos na era do fake, numa era de ambiguidades chamada de pós-moderna onde as fronteiras entre o falso e o real, original e cópia e ficção e realidade se acentuaram bastante e se tornaram muito frágeis. Notícias falsas sempre existiram e sempre foram usadas como propaganda de guerra, mas tornaram-se bastante acentuadas com o surgimento das redes sociais. Além disso, como professor de literatura, trabalhei muitos anos com vários autores de diferentes nacionalidades e com diversas teorias e tempos históricos. Meus estudos dos períodos literários (do clássico ao contemporâneo) me levaram a descobrir que aquilo que consideramos hoje como uma das características do pós-moderno, a ambiguidade trazida por esses elementos citados, principalmente em relação a original e cópia, tem suas origens muitos séculos atrás. Na Europa, conhecida como o berço da civilização ocidental, as histórias viajavam de cidade a cidade, de país a país de forma oral, algumas sendo traduzidas ou contadas em forma de cantos pelos trovadores no tempo medieval. E quando atravessavam fronteiras geográficas, linguísticas e culturais, as histórias iam sendo recontadas e reescritas sem que a questão de autoria tivesse tanta importância como hoje. Até o surgimento da imprensa no século XV, do Copyright Act na Inglaterra em 1710, e dos direitos do autor promulgados durante a Revolução Francesa (1791 e 1793), não se enfatizava tanto o direito do autor original, pois o que importava era como cada um contava sua história. Esse descaso pela autoria também acontecia na pintura, pois até a Renascença, alguns grandes mestres assinavam as pinturas de seus alunos como reconhecimento do mérito de seus trabalhos, o que era considerado uma honra e não plágio. Mitos comuns a várias culturas eram recontados de forma oral por diferentes autores desde o período clássico grego. A Íliada e a Odisséia ficaram famosas na versão de Homero, mas a mesma história já existia de forma oral e a própria existência desse autor é questionada, havendo teorias que admitem a escrita dessas obras por diversos autores anônimos. É o mesmo caso de Shakespeare que se apropriou de histórias famosas escritas por outros autores, como Romeu e Julieta, por exemplo, e a transformou numa história ímpar no modo como usa a linguagem para recontá-la. Esse tema é o que molda o conto “O ladrão de histórias” e também percorre outros contos de modos diferentes.
3. Sabemos que o livro abrange diversos temas e estilos literários. Como você conseguiu unir esses elementos de maneira coesa em uma única obra?
Na verdade, a escolha aconteceu por acaso mesmo, de forma inconsciente. Fui garimpando alguns dos contos que havia escrito e fui escrevendo novos que, de um modo ou de outro, pareciam seguir um fio condutor. Por exemplo, eu havia começado a escrever uma peça quando ainda era estudante universitário e a peça ficou incompleta, guardada num caderno. Revendo o material que possuía, a reencontrei e em vez de continuar a escrita da peça, resolvi transformá-la num conto em que um grupo de amigos vai ao teatro assistir a uma peça que um deles havia escrito. Depois da peça, os amigos se reúnem num bar para bater papo e discutem os temas tratados na peça, comparando-os às suas próprias experiências, como num jogo de espelho entre ficção e realidade. Outras ideias foram aparecendo e um conto surgiu a partir de uma imagem contida num poema de Robert Frost, poeta estadunidense. Ao estudar esse poema numa de suas aulas, um estudante desenvolve um devaneio metafísico sobre as possíveis escolhas que fazemos na vida, provocando uma acirrada discussão posterior acerca de livre arbítrio e predestinação. Noutro, a história de um personagem de um poema se mescla à história real de seu autor e ressurge um século depois quando um outro personagem repete a sua história de modo idêntico, numa mescla de vidas e repetição de fatos em tempos e países diferentes como uma espécie de viagem temporal. Algumas das histórias partem de dados de realidade, fatos que aconteceram comigo ou com pessoas conhecidas que me foram contadas. Para não incorrer no perigo de plágio que acomete o personagem da primeira história (totalmente fictícia, mas com base em alguns dados reais), transformei todas elas com vários elementos ficcionais e muita imaginação, alterando totalmente a história que serviu de base. Outras histórias resultaram de sonhos que tive ou são frutos da minha imaginação mesmo, como uma metanarrativa em que o personagem se revolta com o autor e decide assumir o rumo da história.
4. O texto da apresentação menciona uma ampla variedade de referências culturais contemporâneas. Pode compartilhar algumas das influências que desempenharam um papel importante na criação dessas histórias?
Sou um leitor voraz desde criança. Criei a paixão por livros na escola primária e nunca mais parei de ler. Além disso, o meu fascínio por línguas estrangeiras me levou a estudar línguas e literaturas de diversos países, modernas (inglês, francês, alemão, espanhol e italiano) e antigas (grego e latim). Com o aprendizado delas, incorporei suas culturas e, obviamente, elas se refletem na minha escrita. Por muito tempo ensinei inglês e literaturas de países anglófonos. Ensinava a literatura produzida por escritores da Inglaterra, Irlanda, Estados Unidos, Canadá, África do Sul, e, em menor escala, Nigéria e Austrália. Também ensinei literatura brasileira e portuguesa e li muitos escritores franceses, russos e alemães. Adoro viajar e viajo muito. Conheço grande parte dos estados brasileiros e diversos países. Já morei três anos nos Estados Unidos como estudante de doutorado, um ano na Inglaterra fazendo pós-doutorado, dois meses na Alemanha e, por pouco tempo, fazendo palestras na Itália. Absorvemos tudo aquilo que lemos e vivenciamos, seja de modo consciente ou inconsciente e isso acaba influenciando o nosso estilo. Como tive contato com estilos bastante diversificados, também escrevo utilizando estilos diferentes.
5. Os contos do livro apresentam citações e referências. Como esses elementos contribuem para a experiência do leitor e a compreensão das histórias?
As citações e referências aparecem de modo bastante explícito, pois elas, intencionalmente, servem de ignição para a criação de algumas histórias, como já abordei em outra pergunta. Por exemplo, “A avó do Wesley” é dedicado a Caio Fernando Abreu e Roberto Drummond, deixando claro de quem tomei de empréstimo o estilo pop da escrita relâmpago que caracteriza o conto. Algumas (poucas) referências são menos explícitas, como um mimo para os leitores mais sofisticados, mas isso de modo algum atrapalha a fruição do leitor comum e a compreensão das histórias, pois fiz questão de utilizar uma linguagem bastante acessível. O livro contém um estilo variado que tem agradado diversos tipos de leitores, do comum ao especializado e de diferentes faixas etárias.
6. Além do lançamento do seu livro, você também participará de outras publicações, como a Antologia Gueto: Paraty 2023 e a coletânea de contos Off-Flip 2023. Como é a experiência de fazer parte dessas iniciativas literárias?
Venho participando de eventos literários (bienais, feiras, festivais, saraus) desde que publiquei meu livro de poemas Paisagens interiores em 2021. São experiências bastante estimulantes e desafiadoras, pois cada evento tem suas peculiaridades. Pela primeira vez vou participar da Flip e é sempre um grande prazer retornar à linda cidade de Paraty onde já estive duas vezes como turista. No dia 24/11, participo do lançamento da coletânea de contos no SESC Paraty. No sábado, dia 25/11, vou participar dos saraus da Casa Gueto e vou fazer o lançamento desse livro lá às 16h. Estou muito animado com essa nova experiência numa festa literária do porte da FLIP.
7. Qual é o seu conto favorito no livro “Histórias Roubadas”? E por quê?
Difícil escolher, pois cada conto e cada poema é como um filho para o escritor. Gosto de todos, cada um com suas peculiaridades: uns são engraçados, outros reflexivos, alguns introspectivos, outros cinematográficos, uns filosóficos e outros mais misteriosos. Contudo, “O ladrão de histórias”, por ser o primeiro e por ter dado o mote do livro, costuma ser o conto do qual eu falo mais nas entrevistas. Também gosto muito da pegada de thriller que “Era uma vez uma cidadezinha” adquiriu. E como sou muito fã de metaficção, “A revolta do personagem com o autor” também me deixou bastante satisfeito com o resultado. Mas cada conto acaba me conquistando por sua característica própria toda vez que os releio.
8. Alguns escritores veem a apropriação e o roubo de ideias como uma parte natural da criatividade, enquanto outros consideram isso plágio. Qual é a sua opinião sobre esse tema?
Embora os limites sejam tênues, há uma diferença entre plágio e inspiração. Plágio é crime e deve ser punido, quando alguém utiliza as ideias de outrem para obter lucro sem fazer qualquer referência à autoria original, copiando ideias e textos (ou músicas, desenhos e pinturas) ipsis litteris. Para isso existe a ABNT que estabelece regras para citações e a Lei no. 9.610, ou Lei dos Direitos Autorais que protege os autores. Outra coisa é a construção de obras artísticas (ou não) inspiradas em outras existentes. A menção à obra primeira fica clara, assim como fica claro que o artista está fazendo uma releitura ou reescrita daquela obra e está modificando a ideia original com a sua criatividade. Contudo, há pessoas que repetem a passagem bíblica do Eclesiastes 1:9: “O que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do sol”. Elas acreditam que não há nada original, somos todos copiadores e repetidores de ideias pré-existentes, quer saibamos disso ou não. Ou seja, como se alguém, em algum lugar, em alguma época já tenha tido as mesmas ideias que nós e as tenha falado ou escrito. Contudo, a maneira como dizemos as coisas, o nosso modo de escrita e a nossa escolha vocabular gera um estilo que sempre será a nossa marca. Mesmo que prestemos homenagens a escritos que nos antecedem, nosso modo de escrita sempre reflete tudo aquilo que já lemos ou vimos antes, mas o modo de contá-lo, se não for mera cópia, será sempre peculiar.
9. Você mencionou um filme premiado retratando uma experiência pessoal na entrevista. Qual foi a sua reação ao descobrir isso?
A qual filme e entrevista você se refere nesta pergunta?
10. Como membro da Academia de Letras da Bahia e da Academia Contemporânea de Letras de São Paulo, como você vê o papel dessas instituições na promoção e preservação da literatura brasileira?
Todas as Academias de Letras têm por objetivo preservar o patrimônio e a memória artística, literária, histórica e cultural de cada município, estado ou país onde elas existam. Isso é parte fundamental de sua existência. Assim, o escopo deve ir para além da preservação da literatura para abranger toda forma de arte e patrimônio histórico. Essas associações têm mudado ao longo dos anos e têm se aberto mais às comunidades nas quais estão localizadas, promovendo diversas atividades para e com a população, principalmente com escolas e estudantes, além dos já esperados incentivos à leitura e à escrita através de concursos literários. Sou um defensor da frase de Fernando Brant que ficou conhecida na voz de Milton Nascimento: “Todo artista tem de ir aonde o povo está. Sempre foi assim e assim será”. E acredito que as academias de Letras do Brasil devem ter esse compromisso.
11. Você tem uma carreira diversificada, atuando como escritor, crítico literário, poeta, professor e pesquisador. Como você equilibra todas essas atividades?
Agora já estou aposentado como professor, mas continuo minhas pesquisas para os livros que escrevo. Como gosto de ler e escrever e como faço parte de uma academia, acredito ser meu dever divulgar a literatura contemporânea produzida no Brasil, principalmente aqui na Bahia onde moro. Uma vez que os cadernos literários deixaram de existir, procuro dar a minha contribuição, seja escrevendo resenhas para os jornais toda vez que me deparo com um livro que realmente mereça ser divulgado, ou escrevendo artigos sobre tópicos atuais que envolvem arte, cultura, cinema e literatura.
12. Você tem experiência em tradução. Como essa experiência influencia sua escrita e abordagem literária?
Somos um todo composto de partes e tudo aquilo que nos compõe irá influenciar nossas atitudes, nossa visão de mundo, nossa relação com os outros e também nossa escrita. O que aprendi com as teorias e processos de tradução sempre me ajuda na hora de escolher palavras e modos de dizer e enunciar o mundo à nossa volta. Essa influência aparece de modo inconsciente, não é algo que perceba na hora, mas depois que leio, às vezes descubro que a escolha de um modo de dizer algo ou de representar o mundo reflete um pouco das culturas de outras línguas numa espécie de tradução interna.
13. O que podemos esperar de Décio Torres Cruz no futuro? Existem projetos literários emocionantes nos quais você está trabalhando?
Sim, estou com vários livros prontos: um de poesia, um de contos, um infantil e um de crônicas. Incompletos, há um romance sendo escrito em inglês, que estou traduzindo simultaneamente para o português. Na área de teoria, há um livro inacabado sobre as adaptações cinematográficas de Macbeth (escrito em inglês para o projeto de pós-doutorado na Inglaterra) e na área de língua um dicionário de provérbios inglês-português. Os projetos teórico-didáticos ficaram de lado depois que comecei a me dedicar à ficção e preciso retomá-los. Além disso, estou traduzindo História roubadas para o inglês. Portanto, há muita coisa vindo por aí.