https://abacus-market-onion.top Entrevista: Cynthia Pereira de Araújo, advogada da União - Marramaque

Entrevista: Cynthia Pereira de Araújo, advogada da União

1. O conceito de dignidade e autonomia é central em seu livro. Como você define esses termos no contexto da saúde e do cuidado paliativo?

A dignidade vem da ideia de dar a si mesmo seus próprios fins (Kant), o que implica tomar decisões com base nos seus próprios valores. Não é possível escolher por si mesmo quando se é enganado. Quando se está diante de uma doença grave, conhecer a verdade, os caminhos possíveis e até onde pode levar cada um, com transparência sobre diagnóstico e prognóstico, é essencial. Não há dignidade sem autonomia e não há autonomia sem informação honesta. Ter o acompanhamento de uma equipe de cuidados paliativos desde o início ajuda muito na garantia dessa dignidade, porque a boa comunicação está no centro desses cuidados, que se voltam para o bem-estar da pessoa, e não para o tratamento de uma doença. A condição de “paciente” não esgota o que uma pessoa é. Ela pode ter a melhor qualidade de vida possível, mesmo quando essa vida dure pouco tempo. 

2. A pesquisa de doutorado que fundamenta o livro inclui conversas com pacientes de câncer metastático no Brasil e na Alemanha. Quais foram as semelhanças e diferenças mais marcantes entre as experiências desses pacientes nos dois países?

Os resultados das conversas com pacientes no Brasil e na Alemanha foram muito parecidos, o que me surpreendeu. A expectativa equivocada sobre os tratamentos realizados se mostrou bastante semelhante. As diferenças mais marcantes nessa experiência foram a questão da religiosidade, sempre muito presente nas falas das pessoas brasileiras e quase ausente nas alemãs; e o acompanhamento de pacientes brasileiros por familiares ou amigos, enquanto, na Alemanha, as pessoas geralmente estavam sozinhos para fazer as sessões de quimioterapia ou as consultas.  

3. No livro, você defende que é importante que os pacientes recebam informações claras e realistas sobre seu diagnóstico. Como você acredita que a comunicação entre médicos e pacientes pode ser aprimorada para garantir que os pacientes realmente compreendam suas opções?

Médicos precisam entender que se comunicar bem é uma habilidade essencial da sua profissão. Não é algo que pode ou não acontecer a depender de dom ou características individuais de cada um, é algo que precisa ser aprendido desde a graduação. Existem técnicas para a boa comunicação e elas precisam ser conhecidas e aplicadas. Além disso, precisamos falar mais sobre assuntos difíceis com as pessoas em geral. Um dos propósitos do livro é exatamente este: que nós, quando estivermos doentes ou acompanharmos pessoas queridas que estão doentes, provoquemos mais os profissionais de saúde a explicarem o que realmente está acontecendo e quais são as expectativas sobre os tratamentos propostos, no lugar de simplesmente aceitá-los.

4. Você menciona que muitos pacientes enfrentam uma falsa esperança alimentada pela crença em tratamentos milagrosos. Como essa ilusão pode impactar a qualidade de vida dos pacientes em estágios avançados da doença?

 Pessoas que acreditam que tratamentos podem curá-las ou fazer com que vivam muito mais tempo podem se submeter a sofrimentos muito grandes. É natural que eu minimize desconfortos, dores e incômodos imensos se eu achar que é o preço a se pagar por uma vida mais longa. Mas abrir mão de um presente com qualidade por um futuro absolutamente improvável é outra história. As pessoas têm direito de saber quão próximas estão do fim das suas vidas, porque só assim podem decidir de que forma desejam usar o seu tempo.

5. Em sua obra, você relata a história de sua mãe, que sofreu um AVC hemorrágico. Como a experiência com sua mãe influenciou sua visão sobre o cuidado de pacientes com doenças incuráveis?

Minha mãe tomou todas as decisões que quis, especialmente em relação a intervir ou não. Havia indicações opostas, uma por cirurgia, outra por aguardar. Ela não quis operar nem ser transferida de hospital, embora tivéssemos condições de fazer isso. Nem eu, nem minha irmã, nem meu pai fizemos qualquer pressão sobre como ela deveria decidir. Nós dividimos com ela o que sabíamos, conversamos juntos e ela fez as escolhas conscientemente. O respeito a sua autonomia era algo inegociável e foi essencial para que ela se ocupasse do que desejava naquele momento, que era sua recuperação com muita fisioterapia, ainda que o prognóstico inicial fosse muito ruim. Isso teve um impacto muito grande sobre mim. Nem sempre é fácil aceitar, mas apenas quem vive uma doença grave, que ameaça a sua vida, entende o tamanho do sofrimento que está suportando. Ninguém deveria se sentir em melhores condições de decidir por quem tem capacidade e condições de manifestar suas vontades. 

6. O que significa para você a frase “o médico que precisa ser filósofo e escritor”? Como a comunicação e a empatia podem transformar o tratamento de pacientes com doenças terminais?

Nenhuma outra habilidade médica vai ter mais impacto na vida de um paciente em fim de vida do que a comunicação. O melhor cirurgião do mundo não tem como mudar a vida de alguém com um câncer inoperável, mas o médico que aprendeu a se comunicar adequadamente sim. Existem ferramentas para que as pessoas entendam o que precisa ser dito, sem a imposição da linguagem médica. E existem técnicas para que a gente consiga fazer isso de forma honesta e ao mesmo tempo sensível.  

7. Você fala sobre a importância dos cuidados paliativos e como eles podem melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Quais são os principais desafios que você vê para a implementação de cuidados paliativos no Brasil?

Ainda existe um desconhecimento muito grande sobre o assunto no Brasil e no mundo. A verdade sobre cuidados paliativos é que se trata de uma abordagem que pretende dar uma melhor qualidade de vida para alguém que está enfrentando uma doença grave. Por isso, não faz qualquer sentido que alguém resista a ela: posso lidar com algo com maior ou menor sofrimento e vou escolher viver com mais dor? As pessoas têm medo, porque acham que chamar a equipe de cuidados paliativos é sinal de que a morte está próxima. E isso acontece, porque, como não fazemos o que deveríamos fazer, que é incluir os cuidados paliativos desde que alguém recebe o diagnóstico de uma doença que ameaça a vida, geralmente os paliativistas só são chamados quando alguém está bem no finzinho da sua vida, para oferecer o que a gente chama de cuidados de fim de vida – uma parte importante, mas pequenininha dos cuidados paliativos. Ou seja, a oferta desses cuidados acontece tardiamente e faz com que se crie uma vinculação falsa de que eles estão ligados ao extremo fim da vida. Na verdade, há estudos que demonstram que pessoas que recebem cuidados paliativos precoces vivem até mais do que as pessoas que fazem apenas tratamentos ativos contra suas doenças (quimioterapia, por exemplo). Então, o primeiro desafio é realmente o de conscientização. 

O segundo é de implementação. Não teremos equipes suficientes para prestar esse serviço para toda a população que pode se beneficiar dele, a qual será cada vez maior, porque estamos vivendo mais e morrendo das doenças em que os cuidados paliativos são adequados. Os governos precisam criar estratégias para que consigamos criar serviços e, para isso, precisamos remunerar o tempo dos profissionais de saúde. Mas remuneração de tempo – e não de procedimentos – ainda é algo bastante abstrato na medicina. 

8. No contexto da sua carreira na Advocacia-Geral da União, você teve contato com a questão do fornecimento de medicamentos para pacientes com câncer. Como a questão do acesso a tratamentos médicos impacta a autonomia dos pacientes?

 Levar as questões de saúde para a linguagem de direitos faz com que os envolvidos, médicos e pacientes, preocupem-se menos com o que realmente pode vir de benefício de determinados tratamentos, e mais com o direito a eles. O paciente acredita que está exercendo autonomia, porque está buscando um direito. Ele não pensa “mas será que eu realmente entendi o que esse tratamento pode fazer por mim? Será que realmente o desejaria se entendesse?”. Ele pensa apenas “eu tenho direito a isso”. Realmente, existe tratamento disponível para quase tudo na medicina. Mas, em muitos casos, muito mais do que a gente imagina, o tratamento não vai salvar o paciente, nem fazer com que ele viva mais ou melhor. Muitas vezes, ele realmente não trará qualquer benefício e ainda pode ser bastante prejudicial. Nem tudo que é tratável precisa ou deve ser tratado, mas é assim que médicos e pacientes, irrefletidamente, assumem que deve ser.

9. Em relação ao seu livro, qual você acha que será o maior impacto para o público leigo? Qual a mensagem principal que espera que os leitores tirem de “A vida afinal”?

Eu acho que “a vida afinal” é um livro que dá um sustinho para a maioria das pessoas. Que faz com que elas se lembrem da realidade que a gente tenta esconder de que, o tempo todo, tem alguém morrendo e que nada impede que sejamos nós. Nada impede que, amanhã, o diagnóstico de uma doença grave seja em nós ou em um de nossos maiores amores. Refletir sobre morrer é refletir sobre o nosso tempo, sobre quanto achamos que ele vale. O livro tem, além das reflexões mais filosóficas, alguns direcionamentos bem pragmáticos: busque respostas quando estiver em uma consulta médica. Confira se o que você entendeu é realmente o que está sendo dito. “Você está respondendo bem ao tratamento” não significa “você está sendo curado”. Pergunte o que quer dizer. Entenda o que está sendo proposto para avaliar se realmente faz sentido para você. Se o tempo e a energia gastos ali serão compensados de alguma forma. Se você realmente quer aquilo, que é oferecido como se fosse uma necessidade. Não é. É uma possibilidade.

10. Por que você acredita que a perspectiva de morte deve ser abordada de maneira mais aberta na sociedade? Como isso pode ajudar os pacientes a fazerem escolhas mais conscientes sobre seu tratamento e seus últimos momentos de vida?

Falar sobre morte é falar sobre vida. Lembrar que o nosso material humano é finito, termina, é o que faz com que a gente tome as decisões que toma. Isso tem impacto em todas as áreas da nossa vida, porque interfere diretamente no que é prioritário. Quando colocamos a morte em perspectiva, conseguimos ver com mais clareza o que é importante. Isso interfere em como lidamos com as nossas relações, em quanto dinheiro ou energia achamos que vale a pena gastar com cada coisa. Para pessoas que sabidamente estão em fim de vida, esse cálculo é muito mais sério. Existem coisas que só fazemos, porque e quando entendemos que o tempo está chegando ao fim. Não é porque eu estou no último ano da minha vida, que alguns dos momentos mais importantes da minha biografia não possam acontecer nele. Muitas vezes acontecem. Quando mentimos para pacientes a respeito de quanto tempo resta, estamos tirando deles a possibilidade de viver, sem que consigamos impedi-los de morrer. 

11. Se você pudesse recomendar uma mudança no sistema de saúde para garantir mais dignidade aos pacientes com doenças incuráveis, qual seria?

 O acesso universal aos cuidados paliativos é o que acreditamos que existe de melhor para que pacientes com doenças ameaçadoras da vida tenham dignidade. Mas, para que isso realmente aconteça, precisamos de muitas mudanças. Uma delas é a mudança nos próprios cursos de medicina. Médicos são formados apenas para impedir a morte. E a morte não vai parar de acontecer. É necessário que os profissionais de saúde entendam como digna a possibilidade de viver o fim de sua vida. 

12. O livro é direcionado a um público mais amplo. Como você espera que pessoas sem formação técnica em saúde, medicina ou direito se conectem com os temas abordados em “A vida afinal”?

A quase totalidade de nós vai se ver diante de uma doença grave, que vai acontecer em nós, nos nossos pais, nos nossos filhos, em pessoas muito próximas. É por isso que a vida afinal é um livro para todo mundo, porque ele quer conversar com as pessoas que vão se ver nesse lugar. Sei que muitas pessoas acreditam que falar sobre morte atrai e preferem se distanciar desses temas. Eu estou aí há pelo menos doze anos fazendo isso o tempo todo e posso dizer que falar sobre morte atrai sim: atrai vida. Atrai perspectivas melhores de existência e realização. E, na medida do possível, ajuda na construção de lutos mais saudáveis, exatamente porque cessam os arrependimentos daquilo que poderia ter sido feito, e não foi apenas porque se achou – como a gente geralmente acha – que se teria mais tempo.