1. O que inspirou você a escrever “O cântico de Medusa” e como surgiu a ideia de explorar a dualidade entre realidade e subjetividade?
O que me inspirou a escrever esse livro foi a busca por me enveredar para outros gêneros literários, pois até então, no campo da literatura, só tinha escrito livros de poemas. Procurei me diversificar, estudando muito sobre a técnica do conto e da crônica para me aperfeiçoar, além de ter lido os autores consagrados e os contemporâneos para enriquecer meu conhecimento. A ideia da dualidade entre realidade e subjetividade surgiu de o próprio fazer poético, pois meus poemas exploram a inter-relação entre o eu-lírico, suas emoções e pensamentos com o que experienciei ou vivenciei. Até cito um trecho de uma carta de Goethe a Schiller que diz: “o poeta é poeta por saturação da experiência”. Assim, aquilo que já estava em minha poesia transitou para a prosa, fazendo uma ponte entre a subjetividade poética do narrador e a realidade circundante. E a subjetividade altera essa realidade com elementos ficcionais, ou seja, pela invenção que ultrapassa o meramente real.
2. Pode nos contar um pouco sobre o processo de criação deste livro? Houve algum desafio particular?
A criação desse livro surgiu desde 2010, quando ainda estava em sua germinação, com pouquíssimos contos, após a experiência em um grupo de pesquisa acadêmico na UFRJ que prezava pelo Poético em sua alta qualidade, o NIEP. Nesse grupo, pude aprender muito sobre o trabalho dos escritores e me enriqueci bastante, aprendendo sobre a urdidura dos textos literários. Após isso, também comecei a escrever crônicas de teor poético e filosófico que compõem o livro. Dei uma parada e, na pandemia, retomei a escrita dos contos e crônicas. O maior desafio foi lapidar os textos, cortar o excesso, alterar expressões e palavras que não serviam e utilizar uma lixeirinha literária para ver o que não era necessário para tornar os contos e crônicas melhores. Tive apoio de uma consultoria literária que fez a análise dos originais e dando sugestões. No final, dizendo que estava ótimo para publicação, o que me deixou muito honrada e feliz.
3. Como você define a “Medusa bela” que você menciona, e por que escolheu essa imagem específica para o seu livro?
Escolhi a o mito de Medusa, porque ela petrifica pelo olhar, sendo considerada um monstro mitológico. Quis inverter sua imagem, fazendo um jogo oposto e revelar uma nova Medusa olhando para o futuro e não para o passado, que paralisa. A “Medusa bela” é o símbolo do poder do amor que seduz pela voz, por isso, a metáfora do “cântico”. A voz e o canto são as mesmas imagens da arte mais plena de beleza estética quando se fala no poder da mulher. A voz doce e melodiosa é a tessitura do que vem da boca, símbolo do erotismo expresso pelo jogo de sedução. Mas a “Medusa bela” se expressa por todo corpo, que é som e movimento, sendo irmã não das malditas Górgonas, mas das sereias.
4. O que você espera que os leitores sintam ao ler suas crônicas e contos?
Gostaria que meus leitores sintam o entusiasmo de percorrer aquilo que os filósofos diziam sobre a admiração, o espanto, aquilo que os faça pensar, parando diante do texto e o contemplando, pois não quis revelar sentidos óbvios, mas quero que o leitor faça o trabalho de reflexão diante do novo e inaudito. Gostaria que os leitores percorressem minhas páginas tentando decifrar os enigmas encobertos pelos véus das palavras poéticas.
5. Como você integra a linguagem poética na prosa de “O cântico de Medusa”? Qual foi o impacto disso na narrativa?
Escrevo a prosa de forma poética, porque não busco apenas a objetividade. A subjetividade da poesia serviu para ocultar melhor os sentidos do texto que uma prosa mais realista mostra mais claramente. Faço um jogo de chiaroscuro, em que luzes e sombras são projetadas. O espaço do indizível e do silêncio que a poesia demonstra é alcançado pela transparência dos signos prosaicos. Poesia e Prosa, as duas faces de uma unidade compõem minha obra, para se procurar o espaço da pluralidade que as duas formas em sua coexistência podem nos apresentar.
6. Quais são as principais mensagens que você deseja transmitir com este livro?
Desejo transmitir neste livro mensagens como o amor, mas seus vícios também, que devem ser lapidados para que haja um resgate e uma regeneração de aspectos da humanidade. O diálogo com a loucura, com temas universais, como a morte, o tempo. A questão angustiante do trabalho, quando não há amor no que se faz. As análises filosóficas, de crítica de arte, o sagrado, com um caminhar pelas reflexões religiosas, sem buscar o fanatismo, mas a liberdade de expressão. O montanhismo e as trilhas em meio à natureza, assim como a própria natura em suas análises minuciosas. E temáticas polêmicas que aparecem no decorrer do livro para questionamento e até críticas a certas atitudes humanas. O espaço familiar, com a costura dos afetos humanos. Não quis abordar só uma temática, mas quis me apoiar em temas diversos que falassem do humano e suas relações.
7. Como foi a colaboração com Lisa Alves na criação da orelha do livro? De que forma a visão dela complementou a sua obra?
A colaboração dessa multiartista talentosa foi crucial, com uma análise profunda e pertinente sobre minha obra, vendo com um olhar sensível e completo aspectos que eu mesma nem tinha percebido e que revelou aspectos inconscientes da psique humana, pois ela aborda as profundezas da existência do ser. Ela soube enxergar a complexidade da minha obra, pois como diziam alguns de meus professores da Universidade em que me formei, na Literatura se deve complexificar e não facilitar. O objetivo da arte é criar zonas de percepção mais aguçada para seus leitores desvendarem os mistérios do texto literário e foi isso o que Lisa Alves fez belamente.
8. O livro aborda a fragilidade das fronteiras entre sanidade e loucura. Como você explora esses temas em suas histórias?
As fronteiras entre sanidade e loucura são muito tênues, como aparece em alguns dos contos, como “A existência indizível da loucura”, em que esta se interliga magicamente com o próprio delírio do poeta, sendo a família o esteio que recupera a sanidade; “Quarentena onírica”, em que os sonhos e realidade se misturam, dando um sentido de dubiedade entre aquilo que pareceria real ou ilusório (realidade ou imaginação – e o poético sempre presente intermediando) e também o conto “I”, uma experiência no Hospital Nise da Silveira, em que a personagem tem experiências com o sagrado e a loucura, fazendo com que ela enxergue a mãe com outros olhos, os olhos do afeto.
9. Em sua opinião, qual é a importância de desafiar normas literárias e explorar novas formas de expressão?
Acredito que ultrapassar a tradição é um grande desafio para o escritor superar-se e se renovar e atualizar para não recair sempre numa mesma forma de estilo ou escrita. A diversificação que provém da superação de normas literárias leva o escritor a cultivar novas formas de expressão jamais vistas, pois a originalidade é algo que deve permanecer e ser recriado o tempo todo. O novo é uma espécie de batismo literário em que a água da fluidez e da criação iluminam a chama criativa do interior do autor que ultrapassa aquela medida totalitária de se prender a padrões convencionais. Gosto muito das escritas experimentais que diversos escritores inventaram ao longo do tempo e continuam inventando.
10. Como a sua formação acadêmica em Literatura Comparada influenciou a escrita de “O cântico de Medusa”?
Essa formação acadêmica teve uma grande influência na escrita de minha primeira obra de contos e crônicas, pois Lisa Alves, na orelha do livro, diz que faço a fusão entre o poético e a tessitura crítica em “O cântico de Medusa”. Os contos e crônicas têm essa profundidade de análise reflexiva que aprendi nos cursos do Doutorado Em Literatura Comparada, na UERJ, com leitura de artigos, ensaios, livros de composição teórica, que me levaram a unir a prática poética ao discurso acadêmico.
11. Se a Medusa tivesse um animal de estimação, qual seria e por quê?
Um gato, porque os gatos são ariscos, sensuais e têm um miado melodioso e bem sonoro. Medusa representa também essa argúcia que os felinos têm com seu conhecimento do amor que enaltece o belo. Os gatos são esbeltos e traduzem a beleza de uma Medusa telúrica, ligada às profundezas da terra. E esses animais têm algo de misterioso e enigmático que encanta os outros profundamente.
12. Você acredita que algum dos seus personagens poderia ganhar um reality show? Qual deles e por quê?
Teodoro, o escritor, que transita entre o real e o sonho, de “Quarentena onírica”, pois sonha em ter fama, sucesso e ganhar prêmios. Ele era um escritor mediano e vai se modificando na história. Acredito que num reality show, ele iria poder mostrar seus conhecimentos de literatura a partir de suas leituras e tentar se encaixar no mundo real, fugindo do onírico. Dessa forma, a concretude desses shows seria ideal para a sua sanidade.
13. Se pudesse conversar com qualquer personagem de “O cântico de Medusa”, qual seria e o que perguntaria a ele?
Com o “vendedor de almas”, no conto de mesmo nome. Perguntaria a ele qual o segredo dos poetas desde seus primórdios, como surgiu o poder do fogo criador que é a “Poesia”. O vendedor de almas é um descobridor de talentos, dos poetas que vagam no mundo desde sua tenra idade. A origem do mistério da poesia, eis o que gostaria de saber do sábio homem que caminha pelos campos e estradas.
14. Algumas pessoas podem achar a sua abordagem da loucura um tanto perturbadora. Como você responde a essas críticas?
Respondo a essas críticas de uma forma realista, pois trabalho com questões que unem o real ao ficcional, pois misturo experiências humanas à inventividade literária, pois o livro não é um reflexo integral da realidade, mais é filtrada pela peneira artística, que insere a linguagem livre e plena de imagens e metáforas que alteram a realidade. Essa torção do real é “como se fosse realidade” para usar o conceito de Wolfgang Iser, teórico literário. Da vivência se cria algo novo, em que a arte impera. Ou seja, a visão perturbadora da loucura existe, mas é transformada pela ficção em algo artístico para se fazer refletir sobre os fatos.
15. Acha que o seu livro poderia ser interpretado como uma crítica à sociedade atual? Em que aspectos?
Em certos momentos sim, com relação a certos vícios, à Ciência quando ela pensa em interesses mesquinhos, quando é mal utilizada, ao fanatismo religioso, pois trabalho com o Sagrado de forma livre a ponto de não negar o seu complemento, o profano, a partir do erotismo, à civilização contemporânea, que recai na mesmice, a ponto de uma família inteira morar na caverna, para descobrir o novo e fugir do utilitarismo de nossa sociedade, a certas panelinhas literárias, que não veem a diversidade, pois no conto “É preciso afinar os instrumentos das palavras?”, os personagens discutem por terem estilos diferentes. Há alguns escritores na literatura que mesmo sendo bons adotam uma atitude reducionista em achar que só há um estilo de se fazer literatura e pensar que só sua obra é a melhor ou da sua panelinha, numa atitude narcisista, que exclui o outro, sem dar o sentido da alteridade, mas do preconceito que provém de um ego inflamado e doentio.
16. Como você lida com a expectativa de que a literatura deve sempre confortar o leitor, quando seu objetivo é tirá-los da zona de conforto?
Penso que as duas formas de se exprimir são válidas, uma literatura leve, em que a alegria, a utopia e a beleza predominam. E uma literatura mais impactante, que tire o leitor de sua zona de conforto e o faça refletir sobre temas polêmicos e contundentes. Quando o escritor impacta seus leitores os faz enxergar, com novos olhos, aspectos antes vistos de outra maneira. Impactar o receptor serve como ponte para que o senso crítico dele aflore mais ainda.
17. Quais foram os maiores desafios que você enfrentou na sua trajetória como escritora?
Divulgar meus livros e fazer com que eles chegassem aos leitores. Foram lançamentos, fortuna crítica de leitores, ida ao correio, em que investi muito para que o livro circulasse. Esse fluxo constante e movimento de minha parte foi o motor para que a minha obra conseguisse conquistar mais atenção. O leitor, a figura principal deste processo. Sou uma pessoa muito ativa e comunicativa, isso me ajudou a superar esse grande desafio da circulação do livro.
18. Como a experiência de ser professora e tutora influenciou sua escrita?
O aprendizado do que estudei nos livros e nas conversas com alunos foi primordial para meu próprio aperfeiçoamento. A experiência como professora e tutora me deu bagagem também necessária, além do mundo acadêmico no Doutorado. Foi uma experiência mais prática e menos teórica.
19. Pode nos contar sobre a experiência de ter seus poemas traduzidos para vários idiomas? Como isso impactou sua carreira?
Impactou de forma ampla, pois meu trabalho ficou conhecido em outros países a partir de antologias que foram divulgadas em salões de livros e congressos internacionais. Tenho poemas traduzidos para o inglês, espanhol, italiano, alemão, holandês e chinês. E um conto deste livro em francês. Portanto, isso impactou profundamente minha carreira, dando-me notoriedade internacional, fazendo, outra vez, minha obra circular, não em livros, mas em poemas e contos avulsos em coletâneas estrangeiras.