Entrevista: Ailton Santos, escritor

1. Como surgiu a inspiração para “Ninguém no Espelho” e qual foi o processo de criação ao longo dessas duas décadas?
A primeira imagem que me seduziu e me intrigou, como um gatilho para criação de Ninguém no espelho, está na última cena, nas últimas páginas do livro: o personagem principal, apavorado, espiando pelo olho mágico da porta de seu quitinete, no centro de São Paulo, em fuga de perseguidores misteriosos. Dessa cena fiz uma viagem até as origens desse Zé Ninguém, num lugarejo desértico no norte de Minas Gerais, onde ele nasceu, em uma família de trabalhadores rurais, safristas, que sobrevivem com o que ganham os homens vagando por colheitas de laranja, cana, café, em condições precárias.
2.Você mencionou que o livro é cheio de surpresas. Pode compartilhar conosco uma dessas surpresas sem dar muitos spoilers?
As grandes surpresas para o leitor serão as diversas identidades que o personagem vai assumindo para enfrentar seus conflitos íntimos, com a família e também com as próprias ameaças que sente ser alvo por parte da repressão política da época da ditadura militar. Sem identidade, passa da fantasia ao delírio, sempre em fuga e em busca de si mesmo, até o desfecho.
3.Por que escolheu o título “Ninguém no Espelho”? Como esse título reflete a essência crucial da obra?
Numa cena nuclear do romance, o personagem, já num processo acentuado de confusão mental, com momentos de alucinação, olha-se no espelho e não se vê, não enxerga a própria imagem. Como o personagem de um livro que ele revisou para uma editora, sua atividade para sobreviver na Paulicéia.
4. O protagonista do livro se encontra sem identidade em um momento crucial. Como você descreveria essa experiência e ela tem alguma relação com sua própria jornada pessoal?
Como disse na pergunta anterior, a sensação de falta de identidade do personagem chega a momentos de alucinação em que ele não consegue ver a própria imagem no espelho. Nesse aspecto da realidade interior do personagem não há nenhuma relação pessoal com minha jornada pessoal, embora para a trajetória dele eu tenha emprestado muito da minha experiência: nasci na área rural de Minas, fui para uma cidadezinha do interior, para Belo Horizonte e depois para São Paulo. A trajetória se parece, mas as motivações e consequências são totalmente diferentes. Tanto que…sem spoilers!
5. Você mencionou que a construção do livro não se baseia em definições específicas, mas sim em vivências e observações. Como isso se reflete na estrutura e no estilo literário da obra?
Da minha convivência com os trabalhadores da roça, rurais, quando criança, e depois, com trabalhadores safristas, já quando adulto, assimilei suas visões de mundo, crenças e a linguagem. Seus sonhos, medos, privações.
6. Como você espera que os leitores se sintam após ler “Ninguém no Espelho”? Qual é o impacto emocional que você busca proporcionar?
Espero que meu objetivo e vontade de dar voz a esses milhares de brasileiros, calados por suas próprias condições, seja alcançado, com a revelação de seus dramas e sonhos. Enfim, que as legiões de invisíveis idênticos aos personagens passem a ser vistos, ouvidos pelos leitores, com empatia.
7. Além de “Ninguém no Espelho”, você mencionou que lançará em breve outro romance. Pode nos dar uma prévia do que podemos esperar desse próximo projeto?
O romance, com título provisório de “Aqueles pêssegos dourados com um fio de sangue”, tem como protagonista um jovem de uma família de fazendeiros decadentes, que perdem suas terras por dívidas com bancos. Ele sai também do interior de Minas e vem para São Paulo. Sem qualificação, não consegue emprego. Vagando por agências de emprego sem êxito, testemunha a ação de agentes do Deops reprimindo uma passeata no centro de São Paulo e acaba ingressando no aparelho de repressão política. Mas mesmo aí não se encontra, não se adapta ao mundo da repressão, o que acaba o colocando como suspeito pelos próprios colegas.
8. Seu e-book de poemas, “Dançando no Labirinto”, está prestes a ser lançado. Como esse trabalho se diferencia do romance, e qual mensagem espera transmitir aos leitores?
Além da forma, os poemas da parte principal do livro têm como conteúdo as contradições de um mundo em que a tecnologia e a ciência avançam cada vez mais, aperfeiçoando armas de guerra, mísseis etc, contra a vida da maioria da população do planeta.Um exemplo, o longo poema “Nas patas do gato dançam os mísseis” evidencia o paradoxo em que vivemos, com guerras, milhões de exilados, legiões em fuga, genocídios. Com armas cada vez mais letais, graças a bilhões de investimentos, enquanto milhões morrem de fome.
9. Você mencionou sua infância na zona rural de Muzambinho. Como as primeiras histórias infantis e a poesia desse período influenciaram sua trajetória literária?
O contato com a natureza, a terra, as histórias contadas nas noites muitas vezes iluminadas por lamparinas, um clima mágico, de fantasmas, tudo isso me estimulou a imaginação e me levou a escrever meus primeiros versos ainda aos 10 e 11 anos. E alimentaram ainda a segunda parte, mais lírica, de Dançando no labirinto. E outras obras de ficção desse universo estão em elaboração.
10. Além de escritor, você é advogado e jornalista. Como equilibra essas diferentes facetas da sua carreira, e como cada uma influencia seu trabalho literário?
Ao chegar em São Paulo, egresso do terceiro ano de Direito na UFMG, comecei a trabalhar na revisão de O Estado de São Paulo e Jornal da Tarde. Depois fui repórter do Diário do Grande Abc e Folha de São Paulo, período em que terminei Direito, mas não exerci. Após grave acidente que me tirou do jornalismo, passei a advogar, mas sempre escrevendo – poesias, contos, romance. E, na Folha escrevi a coluna de humor político “Contraponto”. Na pandemia selecionei 200 delas em livro que sairá no próximo ano (Graças e desgraças – de Lisboa a Brasília).
11.Se o livro fosse um animal, qual animal seria e por quê?
Um leopardo, que caminha sobre folhas secas sem fazer ruído.
12. Se “Ninguém no Espelho” fosse uma pizza, qual seria o ingrediente principal?
Pitadas de mistério, com aroma de alecrim, sobre massa quase transparente e queijo de minas meia cura.
13. Se o livro fosse uma cor, qual cor seria e por qual motivo?
As cores de um caleidoscópio que se fundem e se confundem, como espelhos que não refletem nenhum rosto, mas sugerem brilhos e mistérios.
14. Algumas pessoas sugerem que a trama do livro é um reflexo de questões sociais atuais. Concorda com essa interpretação?
Concordo parcialmente, pois refletem questões sociais crônicas, que há tempos e tempos fervilham e não se resolvem. Atuais, então.
15. Há quem argumente que a perda de identidade do protagonista é uma metáfora para questões contemporâneas de individualidade. Como responde a essas interpretações?
A individualidade hoje – com o advento das redes sociais, em que as pressões planetárias chegam em tempo real num fluxo contínuo, em nossas mentes – tornou-se quase uma ficção. Temos que resistir cada segundo a invasões e pressões para resgatar a individualidade, que o personagem procura encontrar ou reencontrar, em tempos muito menos agressivos e cruéis.
16. Críticos afirmam que autores multifacetados muitas vezes perdem sua identidade artística. Como você lida com essa percepção?
A identidade artística não cabe em definições e conceitos, creio. Mas ao escrever as colunas de humor político na Folha de São Paulo, apurei minha capacidade de síntese, pois não podia escrever mais que vinte linhas em cada edição. A poesia é um exercício máximo de síntese e um desafio para a observação do poeta, elementos preciosos se bem usados na ficção.
17. No início do curso de Direito, seus poemas foram selecionados e publicados. Como essa experiência inicial influenciou sua abordagem à literatura?
Foi o reconhecimento da qualidade dos poemas, o que me estimulou a prosseguir com a poesia e depois com a ficção.
18. Sua contribuição com textos de humor político para a coluna Contraponto da Folha de São Paulo é notável. Como a sátira política enriqueceu sua expressão artística?
O humor é, por assim dizer, uma substância preciosa tanto para a prosa quanto para a poesia. E o humor político aguçou-me a percepção das contradições humanas, para revelar o ridículo, a prepotência e a crueldade do homem quando no poder.
19. Sua obra abrange gêneros diversos, desde poesia até romances enigmáticos. Como equilibra a diversidade literária em sua carreira?
Como disse antes, o exercício de mais de um gênero não significa dificuldade mas enriquecimento, como se a prática de um iluminasse os caminhos da criação de outro gênero.