Entrevista: Elisa Tolomelli, produtora executiva

Entrevista: Elisa Tolomelli, produtora executiva

1. O que motivou você a transformar sua trajetória em livro neste momento da carreira?

A ideia do livro nasceu da pergunta que mais ouço quando lanço um filme, dou uma entrevista ou participo de uma masterclass: “Como você se tornou uma produtora de cinema?”. Percebi que havia uma curiosidade genuína sobre minha trajetória, e resolvi respondê-la através da literatura. E lá fui eu! é mais do que uma autobiografia — é um jeito de dividir minha história com quem também sonha em trilhar um caminho próprio, dentro ou fora do cinema. Senti que era a hora certa de olhar para trás, rever os bastidores da minha caminhada e compartilhar aprendizados que podem inspirar outras pessoas a seguirem em frente, mesmo diante dos desafios.

2. A obra é atravessada por memória afetiva e bastidores intensos do audiovisual. Qual foi o maior desafio emocional ao revisitar sua própria história?

Escrever o livro foi como abrir uma grande caixa de memórias. Reviver os filmes que produzi, os bastidores, os desafios e as alegrias, me levou a reencontrar uma parte de mim que às vezes a correria do dia a dia deixa adormecida. Redescobri a menina curiosa que ainda existe em mim, e percebi como cada projeto deixou sua marca — e como as pessoas que cruzaram meu caminho ajudaram a moldar a profissional que me tornei. Difícil mesmo foi escolher o que caberia ali, entre quase 40 projetos realizados! Foi um processo de reconexão com tudo o que me move até hoje: o amor pelo cinema e pelas histórias bem contadas.

3. O título E lá fui eu! é direto, quase cinematográfico. Como ele surgiu e o que ele representa para você?

Esse título nasceu de um mantra que sempre me acompanhou. Ao longo da vida, diante de cada nova oportunidade ou desafio, eu dizia pra mim mesma: “E lá vou eu!”. Nunca fui de recuar diante dos desafios — muito pelo contrário, me jogava com coragem, alegria e uma certa dose de loucura boa. Esse impulso de ir, de tentar, de viver, é o que me trouxe até aqui. Quando parei para olhar minha trajetória, percebi que esse espírito desbravador foi essencial em cada decisão importante da minha vida. Por isso, o título foi tão natural. Ele traduz meu jeito de encarar a vida e o cinema: com energia, com afeto e com muita vontade de fazer acontecer.

4. Você esteve envolvida em produções icônicas como Central do Brasil, Cidade de Deus e Lavoura Arcaica. Como foi equilibrar as exigências da produção com a sensibilidade artística de cada projeto?

Esses filmes foram verdadeiros marcos na minha carreira — cada um me exigiu algo diferente, tanto técnica quanto emocionalmente. Em Central do Brasil, meu primeiro trabalho como Produtora Executiva, precisei coordenar um filme de proporções gigantes, com muitas locações e cenas desafiadoras. Tudo precisava funcionar com precisão, mas sem perder o olhar sensível que a história pedia. Já em Cidade de Deus, o grande desafio era humano: saber lidar com as emoções intensas de um elenco majoritariamente formado por jovens e não-atores, criando um ambiente seguro para que todos pudessem florescer. E Lavoura Arcaica foi um mergulho na estética — a direção do Luiz Fernando Carvalho exigia um controle minucioso do tempo e da atmosfera de cada cena. O segredo, em todos os casos, foi entender profundamente o conceito artístico dos projetos e trabalhar para que a estrutura da produção fosse um alicerce, nunca um obstáculo para a criação.

5. Quais momentos dos bastidores mais te marcaram — e que talvez surpreendam os leitores do livro?

Uma das cenas que mais me marcou foi a da romaria em Central do Brasil. Organizar aquela multidão de figurantes em pleno sertão foi um desafio imenso — era preciso coordenar cada detalhe com precisão, mas também com afeto. O calor, a poeira, os equipamentos, a logística… precisávamos manter toda aquela gente alimentada, hidratada e segura. Tudo parecia impossível — até que aconteceu. E aconteceu lindamente. Afinal, essa é uma das cenas mais impactantes do filme. Já em Cidade de Deus, o mais delicado nos bastidores era lidar com as emoções da equipe e dos jovens atores, muitos deles estreando no cinema. Criar um ambiente seguro, acolhedor e profissional foi tão essencial quanto filmar. Eu entendo a produção como uma grande escuta: escutar o filme, a equipe, os imprevistos e, acima de tudo, as pessoas. Esses bastidores, muitas vezes invisíveis para o público, são o que sustentam o sucesso de uma produção.

6. No prefácio e nas falas de grandes nomes do cinema, seu trabalho é descrito como sensível, rigoroso e humano. Como você enxerga o papel do produtor além da logística e orçamento?

A função do Produtor vai muito além de planilhas e cronogramas. Produzir é, antes de tudo, entender o filme em sua essência — mergulhar no conceito artístico da obra e ajudar a traduzi-lo em realidade. Nos cursos que ministro, sempre digo que ser um produtor audiovisual de alta performance envolve inteligência emocional, empreendedorismo, criatividade, liderança, gestão e planejamento. São pilares fundamentais para exercer a função com excelência. O Produtor precisa ser um facilitador criativo: alguém que sustenta o processo de criação sem sufocar a liberdade artística. Para mim, a produção é feita de afeto, estratégia e sensibilidade. É uma arte silenciosa, mas fundamental, que sustenta tudo o que acontece diante da câmera.

7. A partir da sua experiência com formação de novos profissionais, como você vê as principais carências e potenciais da nova geração do audiovisual brasileiro?

Vejo uma nova geração cheia de ideias, energia e iniciativa — o que é maravilhoso. Mas também percebo uma certa ansiedade em querer fazer sem antes se aprofundar. O estudo e a formação continuam sendo fundamentais. A prática é essencial, claro, mas sem repertório e sem preparo técnico, as boas ideias podem se perder pelo caminho. É importante conhecer o cinema, estudar narrativas, entender como funciona cada etapa de uma produção. Por isso, sou tão dedicada à formação de novos profissionais. Ao longo dos anos, desenvolvi o Método Elisa Tolomelli de Produção, que compartilho nos cursos que ministro e, em breve, em livro. É uma forma de pensar e planejar a produção com base em planejamento, gestão e inteligência emocional. O audiovisual exige sensibilidade, mas também planejamento e disciplina. Quando os jovens juntam a criatividade com a base sólida, surgem obras incríveis. E é essa combinação que mais me anima no futuro do nosso cinema.

8. Em tempos de crise no setor cultural, especialmente após o desmonte de políticas públicas, que caminhos você acredita serem possíveis (ou urgentes) para a retomada do fôlego do nosso cinema?

Apesar dos desafios, estamos vivendo um momento de grande visibilidade para o cinema brasileiro — com o Oscar de Ainda Estou Aqui e os prêmios de O Agente Secreto em Cannes. Isso mostra a potência e o talento da nossa produção. Nos últimos anos, começamos a retomar algumas políticas públicas importantes, com editais que valorizam a diversidade e o acesso aos meios de criação. Mas o mercado ainda está estrangulado. Só pra se ter uma ideia, no último Chamamento Público do FSA/BRDE, foram inscritos 1.514 projetos de produção de cinema — e devem ser selecionados apenas cerca de 30. Isso mostra o tamanho da demanda reprimida e a urgência de mais investimento e políticas contínuas de fomento. Também é fundamental regulamentar o VOD. As plataformas de streaming lucram com os nossos conteúdos, mas ainda não contribuem proporcionalmente com o setor. Precisamos de regras claras que assegurem o retorno desses lucros para o financiamento de novas obras. O público brasileiro ama cinema — o que falta é estrutura para transformar esse amor em mais filmes na tela.

9. Qual recado você espera deixar com E lá fui eu! para jovens mulheres que desejam atuar na produção cinematográfica?

Eu espero que E lá fui eu! inspire a nova geração, especialmente as mulheres, a se jogarem de cabeça no universo da produção cinematográfica. Quando comecei, ser mulher em posição de comando ainda causava estranhamento, e muitas vezes tive que provar minha competência em dobro. Hoje, é emocionante ver como os sets estão cada vez mais femininos, com produtoras, diretoras, fotógrafas, roteiristas e tantas outras mulheres brilhando e transformando o audiovisual. A nova geração precisa continuar ampliando esse cenário e mostrar que lugar de mulher é onde ela quiser. O cinema está evoluindo para contar histórias mais diversas e sensíveis, e as mulheres têm um papel fundamental nesse processo, trazendo novas vozes e perspectivas que enriquecem toda a indústria.

10. E por fim: já há planos para um próximo livro — talvez focando nos bastidores de alguma obra em especial?

Sim, já tenho um próximo livro previsto, que se chamará O Método Elisa Tolomelli de Produção Executiva. Nele, vou compartilhar o método que desenvolvi e aperfeiçoei ao longo de muitos anos e de inúmeros projetos desenvolvidos. Mais do que teoria, esse livro traz dicas práticas e uma forma estruturada de pensar, planejar e gerir uma filmagem, que pode ser aplicada a filmes, séries ou qualquer projeto audiovisual. O foco é mostrar como um planejamento detalhado e uma gestão eficiente são fundamentais para o sucesso artístico e financeiro de um projeto. Meu objetivo é ajudar profissionais a encurtar seu caminho e se tornarem Produtores Executivos de alta performance, a partir da experiência que acumulei desde os meus primeiros trabalhos. Esse novo livro será lançado no começo do ano que vem.

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