Entrevista: Nay Portella, cantora e compositora

Entrevista: Nay Portella, cantora e compositora

1.            O release descreve “Alvorada” como seu trabalho mais maduro e íntimo. Como você define essa maturidade em relação aos seus discos anteriores?

A maturidade de Alvorada vem da minha disposição de olhar para dentro com mais verdade e menos pressa. Nos trabalhos anteriores, eu estava descobrindo caminhos e sentia urgência em mostrar tudo o que eu era e o que me inspirava. Agora, sinto que encontrei um espaço onde posso dialogar com minhas raízes e, ao mesmo tempo, me abrir ao mundo. Alvorada nasceu de um desejo profundo de desacelerar. O processo foi artesanal e cuidadoso: produzi todas as faixas, gravei piano, synths e construí os sons com calma. Cada canção teve seu próprio tempo, não foram compostas em um dia, nem em uma semana, nem em um mês. Foram vividas com calma e embasadas em muita pesquisa.

2.            O álbum mistura bossa nova, samba, jazz e música regional. Como foi o processo de equilibrar e fundir esses gêneros para criar a sonoridade única do disco?

Gosto de dizer que esses gêneros são como rios que deságuam no mesmo mar: a bossa traz a delicadeza, o samba a ginga, o jazz a liberdade e a música regional a ancestralidade. No meu processo de estudo, a experimentação e a aceitação das diferenças culturais aconteceram de forma muito natural. A viola me conduz a lugares muito distantes, anteriores a mim mesma, é de onde vim, coisa de umbigo. Um encontro generoso entre a MPB e a música do interior, que traz à tona a cultura responsável por moldar minhas raízes e minha voz.

3.            A faixa “Doce 甘い” é uma colaboração transcontinental com a artista Yuga. Como surgiu essa parceria e qual foi o maior desafio em conectar o samba com o minimalismo japonês?

Essa parceria surgiu de um encontro artístico e afetivo que tive com o Japão. A parceria com a Yuga, representa a troca cultural que sempre procuro acrescentar nos meus discos. Em “Viradela”, colaborei com Nilze Carvalho, no segundo álbum, fiz parceria com a cantora francesa REB e agora com a Yuga. Essa música conecta as paisagens musicais do Brasil e do Japão, com a bossa nova e o pop japonês. Optamos por fazer uma música bilíngue, onde cada uma canta na sua língua nativa, mantendo uma sinergia que transcende as fronteiras, oferecendo uma experiência sonora transcultural. É curioso perceber como certas culturas nos atravessam de maneira inesperada. Ao mergulhar no universo oriental encontrei uma riqueza de sonoridades e filosofias que dialogam profundamente com a alma brasileira. A arte pode ser um espaço de encontro entre culturas aparentemente distantes, mas que compartilham a mesma delicadeza de olhar para o mundo.

4.            O release destaca a “atenção minuciosa às pausas e um profundo estudo de texturas”. Você pode falar um pouco mais sobre a importância desses elementos na construção musical de “Alvorada”?

O silêncio é tão musical quanto a nota. As pausas em “Alvorada” não são ausência, mas espaço para o ouvinte respirar e sentir. Já as texturas vieram da busca por camadas: timbres, instrumentos e até respirações que criam paisagens sonoras. Eu quis que cada faixa fosse como um quadro em movimento. As duas faixas instrumentais são um retrato disso, eu não canto apenas solo no meu piano. É a parte do álbum em que me realizo como amante da música instrumental; cresci cercada pelos ecos de Villa-Lobos, Vivaldi, Mozart e Beethoven, e os sinto reverberar em cada acorde que toco. Nessas faixas eu me revelo nua e crua, sem máscaras e nela se revela a influência da cultura musical que vivi e absorvi desde criança. É a música que não canto que fala mais de mim, que revela minhas camadas mais profundas e sinceras, e que deixa transparecer minha essência de maneira pura e verdadeira.

5.            A colaboração com o baterista Marco da Costa em “Rio” é notável, especialmente por sua história com Maria Rita. Como foi a experiência de trabalhar com ele e como ele contribuiu para a bossa nova contemporânea da faixa?

Admiro o Marco há anos, desde o primeiro álbum da Maria Rita e trabalhar com ele foi um presente. Ele tem uma musicalidade muito generosa. Em “Rio”, ele trouxe uma leitura contemporânea, leve e fluida. Foi como se o próprio rio corresse dentro da música, tudo foi colocado com muito cuidado. O som dessa faixa se veste de bossa nova, com minha voz na frente, enquanto o violão caminha para o estilo João Gilberto. Mantive a produção minimalista, mas acrescentei texturas de sintetizadores, dando uma leve profundidade e criando um diálogo com essa cultura sonora que atravessa minha geração. O andamento do álbum vai diminuindo desde a primeira faixa, e em Rio (a quinta faixa) acesso uma densidade com momentos de silêncio e com melodias mais prolongadas, à la Chet Baker.

6.            A produção visual, assinada por Rodolfo Ruben na histórica cidade de Goiás, é um ponto forte do projeto. Como a beleza e a cultura locais influenciaram a estética visual e a narrativa do álbum?

Goiás tem uma aura única: o tempo ali parece mais lento, mais contemplativo. Essa atmosfera se refletiu na estética visual, a luz, as cores, tudo dialoga com a calmaria que busquei no disco.

7.            Com sua formação em Design de Moda, você assinou todo o figurino do projeto. De que forma a moda se integra e complementa a experiência sonora que você propõe em “Alvorada”?

Para mim, moda é extensão da música. No figurino, busquei tecidos fluidos, cores suaves e cortes que transmitissem liberdade e introspecção ao mesmo tempo. É como vestir a própria sonoridade de “Alvorada”: simples, elegante e atemporal.

8.            As faixas “Inverno Sem Verão” e “Seu Dengo” abordam o fim e o recomeço de um amor. Qual foi a sua inspiração lírica para essas canções e como a música se tornou um guia para expressar esses sentimentos?

As duas faixas nasceram de vivências muito íntimas sobre o fim e o recomeço de um amor. Inverno Sem Verão traz esse lugar do reencontro, da cura e do perdão, um processo de amadurecimento que me mostrou que, antes de amar o outro, eu precisava estar em paz comigo mesma. É a música que fala sobre atravessar os invernos emocionais e permitir que a paixão renasça de uma forma mais consciente e plena. Já Seu Dengo é o oposto complementar: é o momento em que me deixo levar pela força do encantamento, pela intensidade de estar apaixonada e viver esse ‘nós’ com toda entrega. A música se torna um guia porque me permite transformar sentimentos em som, seja na delicadeza do samba e do jazz ou no balanço do ijexá, e assim traduzir em poesia e ritmo as fases do amor, com suas despedidas e renascimentos.

9.            O álbum é descrito como uma busca por equilíbrio no caos da vida moderna. O que você espera que o ouvinte sinta ao mergulhar nessa “calmaria” musical?

Eu espero que o ouvinte se permita pausar. Que encontre, nem que seja por alguns minutos, um espaço de respiro e paz. “Alvorada” é um convite à parar e à escuta interior em meio ao barulho do cotidiano.

10.         A faixa “Sempre Vou Te Amar” utiliza a viola e sinos, evocando a tradição da Marcha Nupcial. Qual o significado desses elementos para você e como eles ajudaram a criar essa atmosfera de ode aos “votos sagrados”?

A viola me conecta ao interior, às raízes. Já os sinos trazem a ideia de solenidade, de rito. Quis unir esses dois símbolos para criar uma canção que falasse do amor como algo sagrado, no sentido de compromisso profundo que carregamos dentro de nós.

11.         O release menciona que “Alvorada” é um álbum sobre se olhar e se autoconhecer. Como esse processo de introspecção se manifesta nas composições e arranjos?

Cada música foi um espelho. A introspecção aparece nos arranjos minimalistas, nas letras que não têm medo de se mostrar vulneráveis, nas harmonias que se permitem silêncio. Foi um exercício de olhar para dentro e devolver isso ao mundo em forma de canção.

12.         Olhando para o futuro, você tem três projetos paralelos para 2026. Pode nos adiantar algo sobre a interpretação de Caetano Veloso, o mergulho na bossa nova e o projeto “Interior”?

São três caminhos que se encontram. O projeto com Caetano é uma forma de revisitar a obra dele a partir da minha perspectiva, em piano e voz. O mergulho na bossa nova é quase um estudo afetivo, uma imersão nas raízes e na sofisticação desse gênero que tanto me inspira. Já Interior nasce da minha maturidade em olhar para minhas raízes com uma nova visão contemporânea, recriando músicas sertanejas no piano e voz, e transmitindo aquilo que também sou em essência.

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