Entrevista: Ivana Volcov e Cristóvão Bastos, músicos

Como surgiu a ideia de criar um álbum baseado em diálogos imaginários?
Ilana Volcov: Quando decidimos fazer um álbum juntos, perguntei ao Cristovão o que ele gostaria de gravar. Para a minha surpresa, ele disse: o que você quiser! (Somos amigos há quase 20 anos, já tivemos incontáveis conversas sobre música, e o Cristovão participou do meu primeiro disco solo “Bangüê”, em 2010). Com esse voto de confiança, comecei a esboçar o repertório visando explorar o seu extraordinário “arsenal musical” de pianista-compositor-arranjador, e inspirar a sua sensibilidade.
No meio do caminho, notei que havia um elo entre as primeiras escolhas: eram canções de amor falando de coisas que só poderiam existir na imaginação.
Havia encontrado um mote, resolvi seguir por esse caminho e acho que tive boa “pontaria”, pois o Cristovão gostou das sugestões! Não revelei a temática por trás do repertório para que a nossa “conversa musical” corresse com naturalidade.
Se tivesse ao meu lado outro músico ou instrumento, o repertório teria sido outro. Nesse sentido, não sei se posso dizer que escolhi o repertório. Talvez tenha sido o Cristovão a evocar o repertório!
O título Acariciando tem um significado especial para vocês? Como ele traduz a essência do álbum?
Ilana Volcov: “Acariciando” traduz a essência do álbum de diversas formas.
Brasil e Portugal
Primeiro, é o nome de uma das faixas do álbum, um choro de Abel Ferreira e Lourival Faissal. Os verbos no gerúndio aparecem em vários títulos de chorinhos, como Cochichando, Falando de Amor, Chorando Baixinho, Murmurando. Por ser uma forma verbal muito usada pelos brasileiros e pouco pelos portugueses, o gerúndio atribui uma brasilidade ao álbum nascido no Porto. Por outro lado, remete ao choro, um gênero musical brasileiro muito vinculado à nossa herança portuguesa. Dessa forma, o título “Acariciando” tem um pouco de Brasil e um pouco de Portugal.
O Amor
Depois, o tema do disco é o amor, e acariciar é um gesto amoroso.
O imaginário
O mais curioso é que a carícia da canção “Acariciando”, só acontece no campo da imaginação: “não devemos ficar longe, acariciando desejos iguais”. Então “esse” acariciar também ilustra a natureza do álbum, que é pautado no imaginário.
O ilusório
O título ainda dá margem à interpretação, pois a carícia pode acontecer entre os personagens das letras, pode estar na relação da voz com o piano ou no encontro do álbum com o ouvinte! Aqui existe uma alusão ao próprio álbum, que é repleto de ilusões.
Nossa intenção
Voltando ao gerúndio, “acariciando” é algo que acontece no presente. No caso, expressa amor agora mesmo! E esperamos, verdadeiramente, acariciar o público com a nossa música a cada vez que ela tocar!
Como foi o processo de seleção do repertório? Houve alguma canção que vocês consideraram, mas acabou ficando de fora?
Ilana Volcov: Contei um pouco sobre o processo na primeira resposta. Mas posso dizer que existem muitas que ficaram de fora da seleção inicial. Espero recuperar algumas em outra oportunidade! Agora, um segredo: houve uma música que ficou de fora do álbum depois de gravada.
O álbum mistura gêneros como valsa, choro e samba. Como vocês equilibraram essas diferentes influências dentro do conceito do disco?
Cristovão Bastos: A fórmula de equilibrar é simples: todas essas músicas fazem parte de um universo de canções brasileiras, a raiz delas é comum. Então, não é difícil juntar esse tipo de música.
O que vocês esperam que o público sinta ao ouvir esse álbum?
Cristovão Bastos: O que a gente espera é que o público sinta afinidade que existe entre a gente, a beleza das canções escolhidas (que realmente são muito bonitas), e entre nesse “espaço” que a gente entrou. São canções que não se ouve todos os dias, não estão rodando por aí na grande mídia, mas são fortes e fazem parte da esfera da música. A música é algo muito grande que tem sido reduzida a um pedaço muito pequeno.
Como nasceu essa parceria entre vocês? O que cada um trouxe de mais especial para o projeto?
Ilana Volcov: Nós nos conhecemos em 2007, mas foi em 2010 que surgiu a parceria musical, quando Cristovão participou do meu primeiro disco solo, “Bangüê”. Gravamos uma história de amor, o único dueto do disco e a única faixa com piano. Ali estava a “semente” do álbum “Acariciando”, lançado 15 anos depois!
O que cada um trouxe de mais especial? O nosso diálogo musical é uma continuação das nossas conversas habituais. Então, mais do que salientar as diferenças, eu diria que trouxemos dois ingredientes especiais: o nosso amor pela música brasileira e a capacidade de nos divertir a cada encontro. O álbum é um retrato musical da nossa amizade.
Ilana menciona que Cristovão se porta como um “aprendiz” diante da música, sempre buscando caminhos novos. Como isso influenciou a sonoridade do álbum?
Cristovão Bastos: O Cristovão é um oceano de criatividade e tem todos os recursos musicais na ponta dos dedos. Ao mesmo tempo, é uma pessoa muito espiritualizada, capaz de fazer as coisas com total entrega e presença. Então, está disponível para viver a música plenamente a cada vez que senta no piano. As mesmas canções, se gravadas no dia seguinte, dariam origem a um álbum muito diferente. Eu aprecio imensamente esse frescor na hora de fazer música e faço o meu melhor para “cantar conforme a música”. Espero que a sonoridade desse álbum seja cheia de vida.
Há uma forte presença do piano e da voz como protagonistas. Como foi o desafio de construir um álbum nesse formato mais intimista?
Cristovão Bastos: Não considero um desafio fazer um álbum desse. Essa coisa intimista tem muita força. De fato, quando temos apenas duas pessoas fazendo música, ambas ficam muito expostas. Nesse sentido, existe o desafio da exposição. Mas ele é contornável pelo prazer no que estamos fazendo. E quando há prazer, não é difícil você se esmerar pra fazer melhor.
Ilana, você vive em Lisboa há sete anos. De que forma essa vivência influenciou a sua visão sobre a música brasileira e a sua forma de interpretá-la?
Ilana Volcov: Portugal é um país muito musical e poético. Tem inúmeros gêneros musicais encantadores. Mas é provável que eu tenha sido influenciada pelo fado. Explico: sempre gostei de cantar coisas como “Modinha” (Tom/Vinícius), Pra dizer adeus (Edu Lobo/Torquato Neto), mas não optei por esse tipo de música no disco “Bangüê”. Eu vejo o canto como uma “fala circense”. No dia a dia, vocalizamos os sons da nossa região média, usamos pouca quantidade de ar e as nossas frases não exigem muito em termos de articulação. No canto, a voz corre, salta, dá cambalhota, pirueta, faz espacate, enfim, usa seus recursos de forma virtuose. Pra mim, o fado é completamente circense, porque a melodia expressa a dramaticidade da história com seus altos e baixos, e o cantor ainda faz variações melódicas, suspensões e explosões, usa mil e um recursos vocais para traduzir o sentimento por trás do texto.
Em Portugal, as pessoas ouvem várias dessas canções por noite! Com atenção e real interesse. Então, penso que as visitas às casas de fado me deixaram mais à vontade para incluir tantos temas melodiosos e introspectivos em “Acariciando”.
Quanto a minha visão sobre a música brasileira, ela permanece a mesma: é um tesouro sem igual. Me sinto milionária!
Já a minha interpretação, traz muito da minha experiência em Portugal. A imigração exige muitas mudanças internas. Além disso, nessa terra eu vivi três lutos muito importantes dos quais extraí lições preciosas. A meu ver, o canto requer duas coisas: que estejamos despidos e, ao mesmo tempo, cheios de bagagem. Através dessa fórmula paradoxal, estamos presentes e desaparecemos para servir à canção.
O álbum faz referências à ligação histórica entre a música brasileira e portuguesa. Como essa conexão se manifesta nas faixas de Acariciando?
Ilana Volcov: Vejo de forma diferente. Como a música portuguesa está na base da brasileira, o álbum não faz referência, mas resulta dessa ligação e dá continuidade a africana (escravos e descendentes) e europeia (via portugueses). Exibe, desde o princípio, imensa riqueza rítmica, melódica, harmônica e poética. E os autores contemplados em “Acariciando” seguem essa tradição. Sendo assim, eu diria que fazemos um tipo de música portuguesa – aquela que cruzou o Atlântico e ganhou seus próprios requintes!
Como foi a experiência de gravar o álbum em Portugal? Esse ambiente trouxe algo de novo para a forma como vocês trabalharam?
Cristovão Bastos: Foi muito bom gravar em Portugal, um lugar que eu não vou sempre, pois pude conhecer pessoas novas e reencontrar pessoas que conheço num ambiente novo. É muito bom! Eu quero gravar no mundo inteiro! E a outra coisa boa foi reencontrar a Ilana, construir juntos uma coisa que nós já tínhamos pensado.
Ilana, você trouxe a fotógrafa Indre Biancale para dirigir o videoclipe de Uma Canção Inédita. O que te atraiu no trabalho dela e como foi essa colaboração?
Ilana Volcov: Conheci o trabalho da Indre no Instagram e fiquei encantada especialmente com suas fotos mais “surrealistas”, que me lembraram aqueles recursos ilusórios empregados pelos primeiros cineastas. Achei que essa linguagem seria perfeita para o videoclipe de “Uma Canção Inédita” (Edu Lobo / Chico Buarque).
A Indre foi maravilhosa! Estudou detalhadamente a canção, arregimentou uma equipe incrível, e, mesmo sem falar português, lapidou uma narrativa belíssima para a letra do Chico e uma edição musical para o tema do Edu, sempre buscando efeitos ilusórios, metafóricos, poéticos. Tudo ali tem significado.
O videoclipe traz elementos surrealistas. Como essa estética dialoga com a proposta do álbum?
Ilana Volcov: Essa música recebeu um videoclipe justamente por ser a mais alegórica do álbum, que é uma coleção de “canções fantásticas” – termo emprestado da literatura fantástica, caracterizada pelo irreal, mágico, onírico.
O álbum inclui Uma Canção Inédita, que na verdade já havia sido gravada antes. O que motivou vocês a incluí-la e como a nova interpretação se diferencia das anteriores?
Ilana Volcov: Inicialmente pensei que essa música fosse abrir o disco pois começa com a frase “dentro do seu coração, guarde essa canção inédita” e acho que esse disco é uma conversa com o coração.“Uma Canção Inédita” não apenas havia sido gravada antes, mas também, foi a única canção não inédita do musical “Cambaio” do Edu Lobo e do Chico Buarque. Ela havia sido composta para o balé “Dança da Meia Lua”, dos mesmos autores, e posteriormente recebeu essa nova letra, doidamente poética e divertida. Em que outra oportunidade eu poderia cantar “roendo-as-unhasmente”?! Preferiria não comparar a nossa interpretação às demais. Até porque, o fraseado do Chico Buarque é um dos mais lindos da galáxia! Mais fácil eu confessar que pretendo cantar várias frases de forma diferente nos shows de lançamento, surpreendendo o Cristovão! (Não vá contar isso pra ele…)
A música Não Me Digas Não é o único tema instrumental e sugere diferentes interpretações. Como vocês enxergam essa composição dentro do conceito do álbum?
Ilana Volcov: Essa música é belíssima e muito luminosa! Tem caminhos inesperados e soluções cintilantes para todos! Achei que seria um bom contraponto às canções mais densas.E o título é sensacional, poderia bem ser uma mini conversa de alguém com o seu amor, no meio dos demais diálogos amorosos do repertório.
Qual canção do álbum foi a mais desafiadora de interpretar ou gravar?
Ilana Volcov: Para mim, esse disco é um festival de temas desafiadores. Cada música tem os seus desafios. A mais simples de cantar foi “Coração Imprudente” (Paulinho da Viola / Capinan) que eu conhecia de trás pra frente! Mas para o Cristovão, foi diferente: ele participou da gravação original da música no álbum do Paulinho da Viola, fez um piano muito marcante e depois tocou a vida inteira o mesmo arranjo nos shows do Paulinho! Então, no “Acariciando”, o que fazer? Repetir o truque ou criar algo? O Cristovão nem pestanejou diante do desafio! Sentou no piano e criou um piano tão incrível, que resolvi “dobrar”, com a voz, o instrumental do final.