Entrevista: Renato Noguera, filósofo e escritor

Entrevista: Renato Noguera, filósofo e escritor

1. O livro apresenta mais de 100 palavras e expressões para pensar o amor e os afetos. Como nasceu a ideia de construir esse dicionário filosófico-poético?
Renato Noguera: Eu parto do pressuposto que habitamos um circuito de afetos. Como afirma o neurocientista português, António Damásio: nós somos máquinas de sentir. Apesar de vivermos imersos em afetos, nosso letramento afetivo não tem se mostrado potente para uma vida social que não lance mão da violência como forma de lidar com conflitos. Assim como aprendemos a ler e escrever, podemos aprender a reconhecer, nomear e elaborar emoções e sentimentos. O ABC do Amor surgiu como um convite a esse letramento afetivo, pensar filosoficamente verbetes que funcionam como portas de entrada para pensar o que sentimos, e, sentir o que pensamos.

2. Você define o amor como ato político e força revolucionária. Pode explicar como esse entendimento atravessa a estrutura do livro?
Noguera: Amar é, tanto um exercício íntimo, quanto um posicionamento ético e político diante do mundo. Em sociedades atravessadas por desigualdades e violências, podemos articular o amor como um afeto revolucionário que pode mobilizar solidariedade e acolhimento.  O livro está atravessado por essa perspectiva: cada verbete é uma pequena rebelião contra o individualismo e a lógica neoliberal que sequestram nossos afetos.

3. O conceito de “letramento afetivo” aparece como eixo central da obra. De que forma essa alfabetização emocional pode transformar nossas relações cotidianas?
Noguera:  Eu estou optando por “letramento” ao invés de “alfabetização”, porque são duas categorias O letramento afetivo nos ajuda a reconhecer emoções, limites e desejos de forma mais nítida, habilitando ao Bem Viver – como ensinam diversos povos indígenas, tal como os guaranis.  O que contribui para criarmos espaço para vínculos mais empáticos, menos violentos e mais plurais.

4. O livro entrelaça referências da tradição ocidental — como Platão e Espinosa — com saberes afrodiaspóricos e indígenas. Como foi esse processo de diálogo entre diferentes matrizes filosóficas?
Noguera:  Esse polidiálogo nasceu de uma necessidade: não é possível falar de amor apenas a partir de uma tradição apenas. Todas as escolas filosóficas são bem-vindas.  Com mais tradições e referências nos ajudam a pensar o amor em chave pluriversal.

5. A inspiração nos griots africanos, contadores de histórias ancestrais, marca sua trajetória. Como essa herança oral se traduz em um livro-alfabeto?
Noguera: O ABC do Amor é um livro atravessado pela cadência da oralidade. Cada verbete tem uma sonoridade própria, como se fosse um conto breve, uma cantiga ou um ensinamento passado à beira da fogueira. A minha herança griot está presente na maneira como os textos foram concebidos: não como dogmas, mas como histórias abertas, que convidam o leitor a contar as suas próprias.

6. No verbete “Abraço”, por exemplo, você traz múltiplos significados do gesto em culturas distintas. Por que é importante resgatar essas tecnologias ancestrais do afeto?
Noguera: Porque gestos simples carregam memórias profundas. O abraço não é só proximidade física; é também ritual de cuidado, pacto de confiança, código cultural. Quando recuperamos essas tecnologias ancestrais, lembramos que os afetos não são invenções recentes nem propriedades individuais. São práticas sociais que atravessam gerações e que precisamos valorizar para manter viva a nossa humanidade.

7. Já o conceito de “Agamia” reflete escolhas fora do script tradicional do amor romântico. Como esse tipo de reflexão dialoga com os tempos atuais?
Noguera: O conceito de agamia nos convida a pensar em relações que escapam ao modelo centrado no casal. Essa reflexão contribui para pessoas agâmicas não serem avaliadas a partir de uma dinâmica amorosa que não lhes diz respeito.

8. Você está celebrando 18 anos de carreira em 2025. Em que medida ABC do Amor é também uma síntese do seu percurso intelectual e afetivo até aqui?
Noguera: Esse livro é, sem dúvida, um momento significativo da minha trajetória. Ele concentra minhas pesquisas mais recentes. O percurso é tanto intelectual quanto afetivo, porque opero com uma perspectiva de que essas esferas estão interligadas.

9. Muitos leitores associam filosofia a textos densos e de difícil acesso. Quais foram os seus cuidados para que o livro fosse, ao mesmo tempo, rigoroso e acolhedor?
Noguera: Eu procuro escrever escutando as palavras. Eu quero que o ABC do Amor seja lido tanto por pessoas que têm curiosidade sobre os desafios de lidar com os afetos.

10. Em sua opinião, quais são os principais desafios do nosso tempo em relação ao amor e aos vínculos afetivos?
Noguera: O maior desafio é resistir à mercantilização dos afetos. Vivemos em uma cultura que transforma tudo em produto — inclusive o amor. Precisamos reinventar formas de vínculo que não estejam submetidas à lógica do consumo e da competição. Outro desafio é lidar com o trauma histórico: as feridas do racismo, do patriarcado e da colonialidade ainda atravessam nossos modos de amar.

11. O lançamento terá bate-papo com Cris Guterres e pocket poético com Jairo Pereira. Qual a importância de reunir vozes diversas para celebrar o livro?
Noguera: A celebração não pode ser solitária. O amor é encontro. Cris Guterres e Jairo Pereira trazem suas vozes, suas trajetórias e suas artes para ampliar a conversa. Esse diálogo com vozes faz ecoar aquilo que o ABC do Amor defende: o afeto como espaço de partilha.

12. Para quem vai abrir o livro pela primeira vez, qual palavra ou verbete você recomenda começar a leitura — e por quê?
Noguera: Eu não fico à vontade para sugerir um verbete específico. O que posso dizer é que escolha o primeiro afeto que vem em mente, não desconfie do que você sente. Essa é uma lição ensinada pelo  griot Toumani Kouyaté. 

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