https://abacus-market-onion.top Entrevista:  ANNÁ, cantora e compositora - Marramaque

Entrevista:  ANNÁ, cantora e compositora

O título do EP une os arquétipos de deusa e diaba — dois pólos muitas vezes vistos como opostos. O que significa, para você, ser essa “Diaba da Terra do Sol”?

Resumidamente, a união de pólos tão opostos aqui tem a intenção de sair do maniqueísmo de ‘bem e mal’. A Deusa erra, a Diaba também. A Deusa tem vida sexual, a Diaba tem compaixão, enfim, cá estou eu questionando novamente os certos e errados de nossa sociedade.

Paradoxalmente me apropriar de Deusa e Diaba me torna mais humana, pois exponho minhas sombras e meus ‘superpoderes’, que todo mundo tem.

Mais profundamente, sinto que muitas partes deste projeto ainda ficam inconscientes pra mim, que não consigo elaborar racionalmente, que só depois de um tempo vou conseguir entender, olhando pra trás e vendo o caminho. Por enquanto estou pisando no chão com força, avançando sem deixar a peteca cair. 

A faixa “Pra que tanta pressa?” parece sintetizar uma crítica ao ritmo frenético da vida moderna. Em que momento pessoal essa música nasceu?

Compus essa música no começo do fim da pandemia. Naquele período eu estava muito ativa nas redes, trabalhava sem parar nas telas, frenética. Em contraste, de repente passei um domingo inteiro sem telas, no parque augusta com minha amiga Maria Antonia, encontrando outros amigos, olhando nos olhos, sentadas na grama conversando, rindo. Depois do parque a gente foi comer uma pizza, foi uma delícia de dia. Chegando em casa sentei na cama com minha agenda para escrever as tarefas da semana, então ao invés de uma lista de afazeres, brotou a letra desta música. Em seguida veio vindo a melodia, e assim que terminei mandei um áudio pra Maria cantando. Ela amou e me apoiou muito, como sempre. 

O disco dialoga com referências como Elza Soares, Gilberto Gil, Clara Nunes e Clementina de Jesus. Como essas vozes influenciaram sua identidade musical e a forma de compor?

Eu listaria aqui outras referências para além dessas citadas também. Beyoncé, Johnny Cash, Alcione, João Nogueira, Elis Regina, Rita Lee, enfim, um caldeirão de referências, de pessoas saborosas num encontro musical temperado com acasos.

Gilberto Gil é um dos meus maiores faróis. De trajetória, de vida, de carreira, de família, de política, e de música também, óbvio. O Gil gravou com Mc Hariel recentemente, admiro muito este olhar amplo, compartilho de valores bem parecidos com os dele. 

A Elza foi e sempre vai ser uma gigante também, além da resiliência na vida pessoal, muito me influencia sua garganta de ouro jazzista malandriada, suas interpretações impecáveis, cachoeira de talento.

Clara Nunes foi fundo no tambor, no ritual, admiro sua coragem e sua devoção total ao samba. 

Clementina é o começo, é o arroz com feijão, é a raiz, é o chão. Meu pai nasceu na mesma cidade da Clementina, chamada Valença, interior do RJ. Sua música está para além das partituras. Clementina é o abraço de vó que todo mundo precisa, é o afeto básico para nossa sobrevivência. Coincidência ou não, hoje trabalho com a “Clementina Produções”.

E com certeza ao ouvir as pessoas vão identificar outras referências que eu nem percebi que ali estavam. 

Há uma mistura entre rock, samba e brasilidade na sonoridade do EP. Como você e sua equipe chegaram a essa fusão de estilos?

Não me prendo muito a estilos, transito entre eles com bastante tranquilidade, pois sou da geração que já nasceu ouvindo de tudo. Então essa fusão não foi planejada, ela foi bem natural e sem nenhuma resistência. A direção musical da Helô Ferreira também foi super acolhedora. “Ah quer colocar algo mais blues, com banjo? Vamo nessa”, num processo de criação muito livre.

Mas eu fico surpresa do rock ter vindo junto ao samba, eu não esperava, não planejei isso. Este álbum foi se formando durante o caminho, não foi algo que eu rascunhei antes, sabe? Foi vindo enquanto a gente fazia, então é muito surpreendente pra mim também o resultado. Quando chamei a Amanda Magalhães para compor a gente não imaginava que a alma da Rita Lee ia pairar tão forte sobre a música. “Ter Ter Ter”. 

O projeto é descrito como uma mensagem de resistência frente ao patriarcado. De que forma essa resistência se manifesta, tanto nas letras quanto na sua postura artística?

Antes de ser resistência frente ao patriarcado, este projeto é uma obra de uma artista independente. Eu escolho tudo do meu projeto autoral, desde as roupas que visto, as palavras que eu canto. Eu fiz porque eu quis, eu escolhi cada símbolo, eu aprovei cada cor, cada nota.

E como disse, foi um processo ‘livre’, partindo de mim, mas que foi recebendo influências e ideias de outras pessoas. Acontece que minha liberdade por vezes incomoda um sistema de crenças chamado patriarcado, e capitalismo também. A gente colhe as consequências. Boas e ruins. Mas em muitos aspectos o álbum também vai na mesma corrente do patriarcado e do capitalismo. Existe uma resistência, mas existe uma colaboração também. 

A resistência maior eu diria que é o fato de ser tão autônomo, de propagar palavras de liberdade, como o convite de uma das letras a ‘dançar na rua’, ou ‘me amar no espelho toda nua’.

Você menciona um processo de renascimento pós-pandêmico ligado à criação do álbum. Que mudanças esse período provocou em sua forma de enxergar a música e o mundo?

Saí da pandemia totalmente sedenta por rua, rolê, gente. Saí todos os dias, por dois anos, sem parar. Toda noite eu estava onde tinha música e gente.

Fiquei mais atenta à valorização do construir presencialmente. Noventa por cento dos instrumentos deste projeto foram gravados presencialmente, em contraste com meu álbum anterior, Brasileira, feito em vários home studios durante a pandemia. Não dei quase nenhum passo sozinha, procurei envolver muitas pessoas em todos os processos. São as pessoas que testemunham e criam sentido. Máquina não cria sentido. Máquina não abraça. Celular não tem alma. (será que um dia isso vai ser diferente?).

Também neste álbum fiz muito o exercício de soltar o controle.

Meus outros álbuns tinham conceitos bem amarrados, planejados. Neste eu soltei bem mais as rédeas, e soltei nas mãos de várias pessoas, deixei várias influências chegarem. Se fosse um filho, diria que deixei ele no colo de muita gente, e ele voltou feliz, nutrido, contente. O conceito dele eu consigo entender melhor agora do que quando comecei, porque foi se desenhando ao longo do percurso.

A música “Ter, ter, ter” critica o consumismo e a cultura da aparência. Como você enxerga o papel da arte num tempo em que as redes sociais moldam tanto o comportamento e o desejo?

É aquela velha história de ‘ferramenta’. Você usa ela ou ela te usa?

A arte está na rede social também, misturou-se com ela.

A rede social pode ser ferramenta da arte e vice-versa. Ferramenta de divulgação, inspiração.

É uma ferramenta muito poderosa, pro bem e pro mal. Pode mudar sua vida. Seu vídeo pode viralizar, sua vida mudar, vários convites para shows.

Ou você pode ficar tão viciado que num momento lindo da sua vida voce passou olhando a tela ao invés dos olhos das pessoas. 

Meu esforço máximo diariamente é lembrar que a rede social é uma ferramenta, um meio, não um fim. 

O trecho “Enquanto tem gente passando fome, eu estou colecionando capinha de iPhone” é direto e provocador. Acredita que a arte ainda tem o poder de despertar consciência num público saturado de estímulos?

Se a arte não puder mais despertar consciência, nada mais vai. Estamos anestesiados, hiperestimulados sim, mas de vez em quando vem aquela frase na música que te tira da inércia. Ou aquela obra de arte que te apresenta outra perspectiva do pensar. Aquele poema que diz tudo que você estava sentindo. A arte sempre vai ter o poder de despertar a consciência. 

O texto de apresentação fala sobre a coragem de dizer o que não querem ouvir. Quais foram os riscos ou receios enfrentados ao lançar esse EP tão visceral?

Lançar o nome “Deusa” já foi dificil. Fiquei com medo das pessoas acharem que era prepotência minha, que eu estava me achando uma deusa, que tivesse perdido a noção da realidade, algo assim, sabe? E Deusa, apesar de positivo, é pagão. No cristianismo não existe Deusa, né? Só Deus. Então aí já foi uma peitada forte.

Agora com “Diaba” é mais difícil ainda, fico lidando com o medo do julgamento cristão interno de cada um. É um desafio pra eu assumir esse título DIABA. Tem muita gente que entende de primeira, “todo mundo tem uma diaba interior, todo mundo tem sombras, e a diaba até que pode ser positiva em vários momentos”, mas tem gente que se assusta muito. Isso me cansa e desgasta, me faz até pensar que pros próximos lançamentos vou procurar títulos menos assustadores. Nem toda arte precisa ser afrontosa. Minha próxima fase vai ser mais tranquila. Descansa militante! 

No cenário atual da música brasileira, marcado por algoritmos e velocidade, como é lançar um trabalho que convida à pausa e à escuta profunda?

É como construir uma barreira de concreto atravessando um rio, como uma eclusa, sabe? As águas vêm correndo, você segura o tempo com os tijolos, diminuindo o ritmo, a correria.

A maneira mais forte de fazer isso é com os encontros presenciais. 

Dessa vez fiz questão de, no momento que o álbum entrou online, meia noite, eu estava cercada de pessoas que eu amo, num lugar gostoso, comendo e bebendo, celebrando. Pois vários lançamentos online a gente passa sozinho encarando a tela, só repostando. Não deixo o digital me esquecer do que importa: olhar nos olhos.

Você tem falado sobre a importância de honrar o feminino ancestral. Como essa dimensão espiritual se manifesta em “DEUSA Diaba da Terra do Sol”?

Paradoxalmente (de novo) venho de uma família cristã, que numa primeira impressão não deve se agradar muito desse título pagão. Mas o título é só uma fachada questionadora, pois quem parar pra escutar sente que o conteúdo do álbum reflete a criação amorosa que recebi. O feminino ancestral pra mim não é só a geração de milênios atrás. Minha mãe é minha primeira ancestral, a ela me importa honrar também, principalmente em vida. 

Por fim, que mensagem você gostaria que o público levasse depois de ouvir o EP — especialmente mulheres e artistas que ainda buscam seu próprio lugar de fala e coragem? 

Não tenho uma mensagem fixa, este não é mais um album panfletário de algum ideário. 

É mais sobre perguntas do que sobre respostas.

Gostaria que fizesse dançar e cantar junto, nem que seja o “O O O “. Dançar e cantar previne a demência e promove bem-estar. 

Quero ver meu povo cantando, dançando e questionando.

Coragem não é ausência de medo. É fazer apesar do medo.