https://abacus-market-onion.top Entrevista:  Deco Fiori, cantor, compositor e instrumentista  - Marramaque

Entrevista:  Deco Fiori, cantor, compositor e instrumentista 

1.O álbum mantém a vitoriosa parceria com o produtor e diretor musical Marcílio Figueiró. O que há de tão particular nessa união criativa que o faz querer repeti-la, e como a direção de Marcílio ajudou a expandir as influências pop neste novo trabalho?

Música e amizade, lema do pessoal do Clube da Esquina que cabe tão bem pra falar da nossa relação como amigos e como parceiros musicais.

O Marcílio Figueiró é um músico incrível, compositor maravilhoso, exímio violonista e o diretor musical e arranjador perfeito pra minha música, porque, pra início de conversa, se identifica muito com ela.

A partir daí, cria arranjos que respeitam completamente a essência das composições, e vão enriquecendo a história, enchendo de belezas as canções. É o meu grande parceiro musical, apesar de ainda não termos composto em parceria (o que é uma questão de tempo).

E sobre as influências pop, acho que essa vertente do meu trabalho  vem mais de mim, mesmo, das minhas influências que vêm dos Beatles, do Lô Borges, do Beto Guedes, do Stevie Wonder… o Marcílio traz a coisa mais profunda, mais Bituca, mais Pat Metheny, mais Toninho Horta… e a minha música, a nossa música, acaba sendo forjada e inspirada por todas essas influências, essas histórias.

2.Você cita Lô Borges e Ronaldo Bastos como grandes referências. De que forma o álbum “CADA VERDADE QUE EU SONHAR” dialoga com o legado do Clube da Esquina e onde ele se diferencia, incorporando as contradições do mundo contemporâneo?

Eu sempre mergulhei e me interessei por todas as vertentes que formam o movimento (espontâneo, é importante frisar) que chamamos Clube da Esquina. Vejam bem: o Lô misturava um som Beatle e progressivo com harmonias buarqueanas e jobinianas… já a música do Beto, juntava essas mesmas infuências sessentistas com o universo de serestas e choros que ouvia, desde menino, através do pai Godofredo Guedes… o Toninho surfava mais na onda do jazz e da bossa nova, que juntava com as toadas da sua Minas natal… já o Bituca juntava isso tudo e ainda trazia no coração do seu som os tambores de Minas, além de temperos acentuados de religiosidade e festas populares de uma Minas Gerais e um Brasil profundo… tudo isso me interessa muito, mas a minha música vem mais dessa mistura de Beatles e mpb que o Lô trazia… a música dele próprio, o resultado dessas influências acaba me influenciando mais que qualquer outra coisa. Coloco, ainda, no meu caldeirão, além de Clube da Esquina e Beatles, Stevie Wonder, Djavan, Melodia, Chico, Tom, Caetano, Gil, Pink Floyd, Ivan Lins, Guilherme Arantes, Rita Lee… e, como letristas, não só Ronaldo Bastos, mas Fernando Brant e, pricipalmente, Márcio Borges (pra falar só da galera do Clube).

Mas tudo isso acaba sendo a bagagem cultural, bagagem musical e poética que vou reprocessar de uma forma original, com a minha personalidade, visão de mundo e identidade própria de um homem de 58 anos de idade que já atravessou o primeiro quarto do séc. XXI e trata, além dos aspectos atemporais e universais da música e da arte, dos temas e impressões do seu tempo, do agora. Junto, então, do meu jeito, temas como o tempo, a vida, o humanismo, a criação, o amor, a amizade, as relações, os sentimentos, as novas realidades virtuais, a morte, a saudade… e as contradições do mundo contemporâneo estão todas aí, no nosso dia-a-dia, nos fornecendo cada vez mais ferramentas e informação, e, ao mesmo tempo, podendo nos armar ciladas que nos levem a supervalorizar futilidades e deixar a profundidade das coisas,  escorrer pelas mãos entre um “like” e uma “selfie”… nesse sentido, gosto de imaginar minha música como um antídoto pra essa banalização e superficialidade que nos rodeia… é, então, ao mesmo tempo uma música contemporânea, autoral e brasileira, sem abrir mão do caráter atemporal e universal.

3.A faixa-título fala sobre o “legado do artista” e o ato de criar na madrugada. Como essa inspiração noturna se conecta com a urgência da maturidade que bate à porta, e qual a sua visão sobre o papel da canção em “inspirar gerações / a botar o mundo pra rodar”?

É a madrugada como atmosfera, como mistério, como cenário pro sonho, que não é necessariamente algo desconectado ou colocado em oposição à realidade, mas algo mágico, transformador, revolucionário… porque, como falou o poeta, a vida não basta.

A urgência da maturidade é, no meu caso, o fato de um ateu caminhando pros 60 anos de idade acabar se confrontando com temas como vida, envelhecimento, morte… colocar essas questões em forma de canção acaba me fazendo um bem enorme, no sentido de tranquilizar, e mesmo aceitar a finitude ao buscar o que é infinito.

A gente tem que viver a vida, curtir, amar, ser amado, tudo isso sem pressa… e as canções estão aí pra espalhar impressões, contar histórias, entrar na vida das pessoas e, quem sabe, servir de inspiração pra que as novas gerações sigam colocando esse mundo pra girar, inventando novas histórias…

No fim das contas, podemos pensar que é o papel da arte na própria história da humanidade.

4.A canção “Toda e Qualquer Geração” contrapõe ideais humanistas à era de “amores líquidos e inteligências artificiais”. O que o humanismo do seu trabalho propõe como antídoto às distopias contemporâneas?

O olhar humanista é o olhar pro bem comum. Se podemos considerar como distopias contemporâneas, por exemplo, a competitividade e o individualismo, que são barbaramente excludentes, acho que quando canto “Não adianta trilhar um caminho Pensando onde se quer chegar Sem considerar quem mais vai caminhar…” ou “Por que não viver em comunhão?

Pra se compartilhar

Um sonho, um sentimento, uma vida, um coração…” estou, sim, propondo uma reflexão, uma utopia como alternativa ao poço sem fundo que estão (e estamos) nos colocando enquanto sociedade.

5.Em “O Meu Mundo Cabe em Meu Quintal”, você a define como a sua “Certas Canções” e cita Milton Nascimento. O que a metáfora do “coração ser o quintal da pessoa” representa para a sua música e para as suas memórias?

Bituca e Fernando Brant… dois heróis pra mim, pelo talento, pela obra humanista, genial, imensa e eterna. O quintal, enquanto metáfora, é, ao mesmo tempo, o nosso lugar mais íntimo e mais acolhedor, seja pra ficar só, ou receber os amigos, o amor, a família… é um lugar de afetos, de alegrias e tristezas, de emoções, de humanidade. É o canto dos sonhos de cada um(a) de nós, onde guardamos nossos tesouros e segredos… Bituca e Brant disseram que “coração é o quintal da pessoa”, e eu, humildemente, continuo:

“o meu mundo cabe um meu quintal”… e encerro:

“todo mundo tem o seu quintal”.

6.A faixa “Tão Iguais”, com a participação especial de Pedro Luís, critica as “realidades paralelas” criadas nas telas. Como você enxerga o desafio de criar arte que incentiva o retorno às “ruas da cidade que a vida corre de verdade” em plena era digital?

Não dá pra virar as costas pra era digital… mas temos que ter cuidado pra não fazer disso tudo a nossa prisão. As ferramentas e facilitadores estão aí e são bem-vindos, mas o resultado final é a arte quem dita… e a vida é lá fora, ou melhor, aqui fora!

E eu tô fora desse negócio de virar um refém das aparências, dos “likes”, e tal, e essa canção faz essa crítica… faço questão de viver a minha verdade enquanto artista, que é compor canções, buscar a melodia mais bonita, o verso certeiro, o acorde bacana, tentar cantar legal, fazer um álbum em que tudo ali tem uma importância única, desde a ordem das canções, passando por cada uma dessas questões musicais e poéticas, até a arte da capa, que passa por um processo longo e intenso de escolhas, mudanças, carinho, sensibilidade e inteligência naturais, como deve ser com qualquer processo artístico.

Se o disco não é mais físico, tátil, o conceito de álbum, de obra, se mantém intacto. Meu desafio é fazer uma arte íntegra, verdadeira.

Aí é tentar fazer o som chegar ao maior número possível de ouvidos e corações, seja espalhando o álbum por aí, seja botando o bloco na rua com os shows. Aí é convocar a galera pra sair das redes e ir pras casas de show e teatros ouvir o som também ao vivo, porque, afinal de contas “É nas ruas da cidade Que a vida corre de verdade Sem pedir licença ou permissão”

7.A sonoridade do álbum navega por influências tão diversas quanto Beatles, Beach Boys, Djavan, Pink Floyd e Stevie Wonder. Como você consegue pesar essas influências tão distintas na balança musical para encontrar o equilíbrio sônico do álbum, representado em “Libra”?

“Libra”, por exemplo, é um blues sobre um fim de relacionamento, com um solo de trompete arrebatador do genial José Arimatéa.

Vejo aí influências de Djavan e Pink Floyd, se é que isso é possível… a canção começa e termina com um canto tenso, que acaba me remetendo mais à ideia de desequilíbrio…

Sobre o equilíbrio do álbum, além de seguir minha intuição, pensei algumas coisas: abrir com a faixa-título, que traduz o tema geral, o espírito e a atmosfera… “Não sei pra onde vou, mas não me desespero Só quero que passe devagar Pra entender quem sou Busco na madrugada Por cada verdade que eu sonhar”… a segunda faixa “Outras Paragens” começa mais vigorosa, com percussões, vocais em uníssono, e continua com a viagem…

“Só nos resta prosseguir viagem

Mesmo sem saber onde vai dar…”

Vou pensando e sentindo, então, como funcionam poética e musicalmente, as “passagens de bastão” de uma música pra outra, até chegar na última, ” Que Negócio é Esse?” que homenageia mais liricamente um grande amigo que partiu… no fim das contas, não é sobre equilíbrio, mas sobre como contar uma história em dez canções.

Sobre, ainda, o papel das minhas influências em cada canção, não vejo como isso possa refletir em equilíbrio, ou escolha da ordem das faixas. Não são canções dos Beatles e do Clube da Esquina, ou de rock progressivo, MPB ou Motown… são canções minhas, com a minha personalidade (formada e forjada por essas influências)… não pensei em colocar isso numa balança pra chegar no resultado final do álbum… a história que vai sendo contada por palavras e sons vai surgindo no processo… no caso desse álbum, isso se definiu antes do início das gravações.

8.A música “Que Negócio é esse?” é uma homenagem ao poeta Marcio Negócio e encerra o álbum. Como o legado dele e a menção a autores como Guinga e Dori Caymmi dão o tom de reflexão e melancolia para o fechamento da obra?

“Cada Verdade Que Eu Sonhar” é um trabalho reflexivo, permeado pela emoção, ao mesmo tempo contemporâneo e atemporal, que tem como temas a vida, o tempo, a criação, as relações humanas, o amor, a amizade, a morte, a saudade…

Acho que a saudade que sinto do meu querido amigo, aqui, fez com que eu quisesse terminar o álbum “passando” um pouco desse sentimento pra quem ouvir na íntegra poder guardar como última impressão. É a saudade, o amor, a amizade em forma de canção.

9.O álbum traz participações instrumentais notáveis, como o trompete de José Arimatéa e o bandolim de Luis Barcelos. Como você e Marcílio Figueiró fizeram a curadoria desses músicos para enriquecer a textura da sua MPB?

Eu e o Marcílio nos sentamos em um bar e ouvimos as dez canções, que eu tinha gravado em voz e violão ou voz e piano.

Todas já na ordem definitiva, com a forma definitiva, com as cifras e letras todas escritas. Ouvimos tudo, cada um com seu fone, e fomos tendo ideias sobre a instrumentação e sobre que instrumentistas chamar. Acabamos formando, pra nossa felicidade, um verdadeiro “dream team”! A ficha técnica ficou assim:

Voz, violões e piano: Deco Fiori

Participação especial: Pedro Luís

Violões e guitarra semiacústica: Marcílio Figueiró Piano e teclados: João Braga Sax soprano e tenor: Daniel Garcia

Trompete: José Arimatéa

Flauta em dó e flauta em sol: Andrea Ernst Dias

Guitarra: Gustavo Corsi

Bandolim: Luis Barcelos

Sanfona: Itamar Assiére

Baixo e baixo fretless: Hugo Belfort

Baixo acústico: Berval Moraes

Bateria: Elcio Cáfaro

Percussão: Fabiano Salek

Vocais: Sofia Jordão Caeiro, Mario Vitor e Deco Fiori

10.O instrumental em “Se Não Tenho Chão (Melhor Voar)” é permeado por ecos de Toninho Horta e Pat Metheny. Qual a sua admiração por esses artistas e como a sonoridade jazzística foi aplicada a uma toada romântica sobre o tema da separação?

Eu adoro o som do Pat e do Toninho, e o Marcílio conhece profundamente esse unverso… aliás, tive o privilégio de ter tido no meu álbum anterior “Luz da Criação” a participação especialíssima do Toninho Horta em duas músicas (“Luz da Criação” e “Novos Ventos”). Voltando à “Se Não Tenho Chão (MelhorVoar)”, gravei em voz e violão pra mostrar, parecia um estudo de violão erudito, com um dedilhado que se repetia e acordes que iam mudando, se encadeando de forma não tão usual. O Marcílio foi tendo as ideias, de colocar outro violão mais agudo, depois mais um, com outra levada, uma cama de teclados, baixo fretless, percussão… mas tudo começou com um pré-ensaio pra passar as músicas pro Elcio Cáfaro (baterista). Essa música não ia ter bateria, mas o Elcio ouviu e falou que fazia questão de tocar… aí chegaram àquele “trenzinho” contínuo, bem a cara do Pat, e foi a partir daí que as ideias começaram a brotar… é uma das minhas canções favoritas, muito por causa, também, da beleza do arranjo.

11.O álbum anterior, Luz da Criação, foi de 2024. O que o motivou a lançar “CADA VERDADE QUE EU SONHAR” com um intervalo tão curto, e como você sente que este novo álbum representa um avanço ou um amadurecimento em relação ao trabalho anterior?

Eu comecei a compor e fazer shows no começo da carreira, entre 89 e 91. A partir daí eu me apaixonei por grupos vocais e troquei o ofício de cantor/compositor pelo de cantor/arranjador vocal. Foram mais de três décadas em  grupos vocais, gravando, fazendo shows, viajando,  apenas com composições esporádicas nesse período. Voltei a compor mais em 2022, e fui convidado pelo meu amigo e parceiro na música Eduardo Braga, pra quem eu comecei a mostrar as novas canções, pra gravar um álbum que seria lançado pelo seu selo Clube Novo. Topei, compus coisas novas, pesquei outras antigas, peguei melodias guardadas e coloquei letras e gravei o album “Luz da Criação”. Fiz alguns shows de lançamento e a ideia original seria fazer uma tiragem em vinil. Só que eu vi o custo que eu teria e pensei que, como eu, depois do show de lançamento, me animei e comecei a compor uma música atrás da outra, resolvi trocar o projeto do vinil por um novo álbum. Assim foi. Compus dez canções em 2024 (sete entre novembro e o começo de dezembro), em janeiro de 2025 fizemos o último show de “Luz da Criação” e entramos em estúdio em fevereiro pra gravar  o novo álbum “Cada Verdade Que Eu Sonhar”.

A diferença é que o álbum novo é composto por dez canções novas, compostas em um período de 6 meses, enquanto no primeiro álbum havia 36 anos de composições. Gosto muito dos dois álbuns, são muito importantes pra mim. Esse processo foi mais organizado, sistemático, tudo gravado num estúdio só, mais arranjos escritos. Sobre evolução ou avanço, acredito que uma evolução natural, pelo momento da vida, por ter composto todas as canções agora. Mas são dois álbuns, cada um com dez canções que escrevi, pelos e pelas quais tenho um carinho e um orgulho imensos, e que são o meu legado, mesmo.

12.Qual a verdade ou o sonho principal que você espera que o público absorva ao ouvir o álbum na íntegra, de ponta a ponta?

Uma canção ou um álbum pode bater de formas diferentes em várias pessoas. Além de ter o desejo de que esse álbum chegue, como falei, ao maior número possível de ouvidos e corações (tendo total noção das limitações de alcance que a música independente tem), quero justamente que as pessoas percebam (e se identifiquem com isso, de alguma forma) que “Cada Verdade Que Eu Sonhar” é uma obra sobre verdades e sonhos, que são, pra mim, palavras  complementares, e não antagônicas.

Que percebam no álbum uma arte feita com verdade do início ao fim, com a integridade da busca pela construção das canções, dos arranjos, da entrega de cada musicista buscando dar o melhor de si, da verdade que é  cantar os temas que me são caros, as relações humanas, amor e amizade, vida e morte, tempo, saudade, afetos.

E que, por fim, percebam que todas essas verdades carregam sonhos, buscam sonhos, sonhos de uma vida melhor pra humanidade, de um mundo melhor, menos apressado e mais profundo, menos desigual e mais terno.

Que a minha música, que divido com tanta gente boa nesse álbum, leve quem a ouvir a um “lugar bacana”. É isso.