Entrevista: Lis Vilas Boas, escritora

1. Como surgiu a ideia de criar uma romantasia ambientada em uma versão fictícia do Rio de Janeiro dos anos 1920? Qual foi sua inspiração para esse cenário?

Eu sempre tive um encantamento com o Rio de Janeiro antigo, que hoje em dia vemos nas ruas na forma de prédios muitas vezes abandonados. É um passado que, apesar de ter moldado a cidade como ela é hoje, é pouco valorizado. Além disso, eu sou uma grande fã das novelas de época desse período, como o Cravo e a Rosa. Então pareceu muito natural usar esse cenário, usando essa estética que eu acho muito bonita. É uma época que é muito reconhecível, ao mesmo tempo que é distante o suficiente dos tempos atuais para parecer mágica.

2. Diana de Coeur e Edgar são personagens com uma moral duvidosa. Como foi o processo de construção desse casal, e como você equilibra o romance com os interesses mais sombrios deles?

O que eu me propus a fazer com esse casal foi criar uma dinâmica em que aos poucos eles vão percebendo que eles são iguais, incluindo nas partes mais feias. As ambições de cada um se aliam e por isso conseguem trabalhar juntos, e por isso conseguem perceber que possuem mais afinidades do que apenas atração física. No fundo, isso é uma história de amor e não uma história sobre quem estava certo e errado, e o amor passa diretamente por aceitação. No fundo, por várias questões do passado de cada um, tanto Diana quanto Edgar não acreditam que podem ou merecem ser amados por outras pessoas, e encontram um refúgio nessa relação. A aceitação do parceiro ajuda na aceitação de si mesmo. Diria que os interesses sombrios e os objetivos escusos são só o caminho para se encontrarem, já que não mudam a forma como se tratam e em momento algum visam machucar ou serem cruéis um com o outro.

3. Você escolheu o lobisomem como figura central de “Garras”, em um momento em que vemos o retorno de monstros clássicos à literatura. O que os lobisomens simbolizam para você dentro dessa narrativa?

Acho o lobisomem um monstro bastante injustiçado, na verdade. O fato dele ocupar ao mesmo tempo dois espaços, o de humano e de criatura, é um campo muito fértil para falar de muitas questões, principalmente aquelas que estão relacionadas ao que as pessoas têm dentro de si e que consideram feio demais para vir à superfície. Principalmente no campo dos romances sobrenaturais e romantasias, acho que muitas histórias simplificam o lobisomem ou a um animal extremamente hierarquizado ou a um animal de instinto puro, e eu queria muito vê-los retratados com mais sutilezas. Sendo tão animais quanto os seres humanos são, tendo que lidar com a fera dentro de si numa sociedade cheia de preconceitos.

4. O tema da vingança é muito presente na trajetória de Diana. Como você acha que a vingança e o desejo por poder podem dialogar com questões femininas contemporâneas? 7. Você menciona ser apaixonada por personagens femininas ambiciosas que se assemelham a vilãs. Por que essa figura de “anti-heroína” te fascina tanto, e como Diana se diferencia das protagonistas tradicionais? 13. Você mencionou que dialoga diretamente com o público feminino em suas obras. Como você espera que as mulheres leitoras se identifiquem com os temas e personagens de “Garras”?

As mulheres foram desde sempre ensinadas que elas precisam ser nobres, que elas precisam ser boas e superiores. Qualquer sentimento mais violento é repreendido desde cedo, ridicularizado… Qual mulher ao demonstrar de forma um pouco mais enfática seu descontentamento não ouviu a fatídica pergunta “tá de tpm?”. Para a nossa sociedade, a ambição explícita e a intransigência não caem bem numa mulher, é preciso engolir todos os sapos e ainda reagir com gentileza. E muitas vezes aquelas que vencem a pressão da sociedade e assumem que vão perseguir seus objetivos a qualquer custo são masculinizadas de alguma forma, ou então são privadas de viverem e exercerem outros papéis que desejam cumprir. Então, Diana vem como uma personagem que decidiu se permitir ter tudo que deseja, isso inclui tanto a retribuição por tudo que foi feito a ela quanto o amor romântico. Diana é uma protagonista que não pede desculpas por ser ruim, ao invés de se retrair diante do julgamento alheio ela se expande e abraça a própria monstruosidade — monstruosidade essa, que a vida construiu dentro dela. Essa é uma fantasia feminina também, a de ter poder sobre o próprio destino e ainda ter as recompensas que teoricamente só as “boas meninas” podem receber. Mas, apesar de estar disposta a fazer qualquer coisa, Diana retém uma feminilidade clichê de passar batom e salto alto. Durante muitos anos tivemos nos livros de fantasia o conceito de “personagem feminina forte” que é uma lutadora, que treina e que não liga para nada relacionado à vaidade, que tem uma beleza considerada natural ao ponto de não precisar de maquiagem. Isso criou uma outra forma de imposição às mulheres: de que era preciso ser assim para não ser fútil, de que força (física e moral) não são compatíveis com determinadas expressões estéticas. Acho que atualmente as mulheres estão finalmente abraçando a ideia de que elas podem ser tudo que elas quiserem, e que esse “tudo” não precisa estar restrito numa única caixinha categorizada, elas podem salvar — ou destruir — o mundo de salto alto.

5. “Garras” parece trazer uma crítica social forte, especialmente ao retratar uma cidade dividida em classes sociais. Como você enxerga essa divisão e seu impacto no desenvolvimento da história? 10. O que você diria que foi o maior desafio ao misturar romance, fantasia e crítica social em uma única obra?

Essa divisão entre classes sociais, que na história é representada principalmente pela forte distinção entre “humanos” e “monstros” e “ricos” e “pobres”, nada mais é do que um retrato do que a nossa sociedade vive hoje, basta substituir a palavra monstro por qualquer minoria que não recebe um tratamento justo e digno. Essa tensão social é muito presente em grandes cidades, como o Rio de Janeiro que inspirou o cenário de Garras, e praticamente impossível de ignorar, então o que eu fiz foi me aproveitar dela para dirigir alguns dos conflitos. Muitos dos problemas que as personagens enfrentam vem diretamente de ocuparem espaços distintos da sociedade e precisarem trabalhar juntos para alcançarem seus objetivos. A maior dificuldade disso tudo acho que foi justamente não criar empecilhos impossíveis de transpor num romance, em que precisa ser compreensível o motivo pelo qual um se apaixona pelo outro. Então lidei com isso equilibrando os poderes (reais e metafóricos) entre Diana e Edgar, e acinzentando a moral dos dois. O fato de ambos serem ambiciosos e estarem dispostos a tudo os colocam em pé de igualdade.

9. O Rio de Janeiro aparece como um cenário cheio de contradições e magia em “Garras”. Como você traduziu a atmosfera da cidade para o universo fantástico da história?

O Rio de Janeiro é a contradição em forma de cidade. O tempo todo aqui forças opostas entram em choque, o feio e o belo andam tão lado a lado que se misturam e nos fazem questionar o que é feio de verdade nesse lugar com tantas injustiças sociais. Ao mesmo tempo que temos bairros muito setorizados, demarcando de forma clara o que é periferia e o que é uma área elitizada, o tempo todo as pessoas circulam e invadem os espaços umas das outras tentando aproveitar o melhor que a cidade tem a oferecer. Essa disputa por espaço é um pouco como os lobisomens disputando território, tentando melhorar de vida. Então além de usar a própria geografia da cidade como inspiração, usei muito desse clima constante de confronto que existe no Rio, seja entre pessoas de classes sociais distintas ou entre grupos agindo fora da lei para tentar dominar algumas regiões.

11. Você foi finalista do Prêmio Odisséia. Como esses marcos impactaram sua trajetória como escritora?

Acho que ser reconhecida num prêmio, mesmo que apenas nas indicações, funciona como um grande validador externo. Por mais que a gente sempre acredite em nós mesmas, e persista com otimismo, sempre passamos por momentos de dúvidas. Esses pequenos grandes marcos como prêmios e números de vendas podem não ser um retrato completo do cenário, mas servem para nos mostrar que não estamos delirando e que é possível. Eu comecei a tentar publicar histórias preparada para ser lida apenas por umas dez pessoas, estar agora nesse lugar em que muito mais gente me lê e considera meus escritos interessantes o suficiente é tanto um alento quanto um combustível para continuar escrevendo.

12. Além de escritora, você é oceanógrafa. De que forma essa outra faceta da sua vida influencia suas histórias e o universo que você cria?

 Ser cientista e ter vivido o ambiente acadêmico me deu muita experiência com diversas partes mais “burocráticas” de se escrever uma história: organizar, planejar, executar até o fim e cumprir prazos… Mas além disso, a forma curiosa com o que eu olho para o mundo como cientista é a mesma presente no meu olhar de escritora, a ciência e a arte são vias de escape diferentes da mesma fonte de curiosidade, acho que curiosidade e inspiração andam muito lado a lado na minha cabeça. E o mar sempre foi uma das minhas maiores fontes de inspiração, esteve presente em vários marcos significativos da minha vida e permeia as minhas histórias mesmo que elas não se passem obrigatoriamente em contextos marinhos.

15. Com eventos de lançamento já confirmados em São Paulo e no Rio, o que os leitores podem esperar dessas sessões? Alguma surpresa planejada para os encontros?

Em São Paulo teremos um bate-papo com a maravilhosa Gabriela Castro, mais conhecida nas redes como @cremeecastigo. A Gabi é uma grande fã de fantasia e romance, faz muitas análises e já é fã de Garras, então antes dos autógrafos vamos ter uma conversa muito legal sobre o livro e também sobre o gênero literário. Além disso, vou levar alguns brindes para os eventos em ambas as livrarias! Espero muito poder encontrar com as pessoas lá.