Entrevista: Larissa Lair, escritora

1. O que a inspirou a começar a escrever Incógnito? Houve algum momento ou experiência específica que motivou a criação dessa história?
A primeira faísca de Incógnito surgiu após ter pego um livro antigo em um sebo. Tinha comentários nas bordas e eu imaginei quem poderia ter escrito aquilo, quais seriam os problemas daquela pessoa que havia lido o livro antes de mim. Essa ideia de um “autor misterioso” acabou se juntando com a minha experiência escolar nos anos 2000 — diários secretos, bullying, primeiro amor e autodescoberta. Assim nasceram Hector e Moonjae.
2. Você menciona no texto que mantinha diários na adolescência. Como a escrita desses diários influenciou a construção do protagonista Hector Yun e sua jornada de autodescoberta?
Acredito que, de certa forma, todo adolescente que escreve um diário deseja, bem lá no fundo, que mais alguém leia. Não qualquer pessoa, claro. Mas alguém especial. Eu escrevia diários (um hábito que adoraria resgatar, inclusive) e depois lia para as minhas amigas mais próximas. Os diários me ajudaram a passar por momentos incertos da adolescência, como a escrita sempre me ajudou, a vida toda. Em Incógnito, o Hector é simplesmente o cara certo que achou o diário no momento certo. Ele nutre um interesse quase obsessivo pelo diário, e decide proteger o autor após ler sobre as situações difíceis de bullying. O Hector fica encantado com a personalidade de quem escreveu tudo aquilo. Enquanto o Moonjae é um garoto que se esconde nas páginas e, na verdade, deseja que alguém se aproxime e o conheça profundamente.
3. Incógnito aborda temas como bullying, homofobia e busca por identidade. Como você acredita que esses temas podem ressoar com os leitores adolescentes de hoje? De que maneira você espera que sua história provoque reflexão neles?
A adolescência é esse momento de busca e experimentação. É quando a gente enfim se separa da imagem dos pais e decide testar identidades novas, mais independentes. Assim, é um momento de muita insegurança e comparação com os outros. Quando eu passei por isso, me sentia assim: esquisita, inadequada, deslocada, não me encaixava. E o bullying também atravessou a minha vivência escolar. A grande reflexão de Incógnito é justamente: “tudo bem não se encaixar, ser esquisito também pode ser legal, tenha a coragem de ser você mesmo”.
4. A obra começou como uma fanfic inspirada em Jungkook e Taehyung do BTS. Como foi o processo de transição de uma fanfic para um romance independente? Quais as principais diferenças que você sentiu entre esses dois formatos de escrita?
A adaptação da história para um original foi um processo longo e difícil. Eu nunca imaginei que Incógnito, a fanfic que eu escrevia como hobbie, poderia um dia se tornar um livro físico. Sempre busquei escrever bem, estudar escrita, revisar os capítulos, entregar para os leitores um trabalho de qualidade. Acredito que, por isso, o número de leitores da fanfic foi crescendo de forma expressiva. Só que eu era tão preocupada com a verossímilhança dos personagens sul-coreanos e da cultura que, mais tarde, percebi que seria impossível “passar” a história para o cenário brasileiro sem modificar tudo e reescrever o livro completamente. Tive medo de perder a essência, aquilo que cativou os leitores na fanfic. Acabei encontrando a solução fazendo com o Hector, o protagonista, fosse filho de pai sul-coreano e mãe brasileira — e a Sofia, com certeza, é uma mãe super brasileira.
Tirando a questão geográfica, a adaptação dos personagens foi mais tranquila. Apesar de ter sido baseado em membros do BTS, o enredo de Incógnito não tem relação alguma com o mundo dos idols ou do k-pop, são apenas alunos do ensino médio, passando pelos desafios comuns da adolescência.
5. A ideia do “diário secreto” em Incógnito é central para a narrativa. Você acha que há um poder especial nesse tipo de escrita, que permite aos leitores e personagens se conectarem de forma mais profunda com seus sentimentos?
Com certeza. A escrita do diário é um momento de se permitir. Ali entram bobagens cotidianas, pensamentos intrusivos, percepções muitas vezes desimportantes. Os leitores se identificam com o Moonjae porque ele consegue falar sobre temas como bullying e autodescoberta LGBTQIA+ e ao mesmo tempo divagar sobre picolés de manga, livros que ama e garotos bonitos. Há uma magia em ler o diário secreto de alguém, é como se pudéssemos acessar um espaço da pessoa que só a gente consegue ver. E existe um contraste entre a personalidade do Moonjae-no-diário e o Moonjae-na-vida-real. Isso incomoda o leitor (e o Hector). Uma das coisas mais bonitas de Incógnito é ver o Moonjae desabrochar — o menino do diário toma posse da sua identidade e têm a coragem de ser, na vida, a pessoa que ele escondia nas páginas.
6. O protagonista Hector começa como um adolescente “típico” e depois se transforma ao longo da história. O que você acredita que é mais importante para um jovem durante esse processo de transformação e autoconhecimento?
Durante a fase da adolescência, é muito importante pertencer a um grupo. Não por acaso temos as “panelinhas”: os populares, os alternativos, os nerds, as patricinhas e por aí vai. A comparação tem um peso enorme, porque se você não se encaixa em lugar nenhum, onde pertence? O Hector é popular, atleta, um garoto que nunca precisou se preocupar em fazer amizades. O confronto com outra experiência escolar diferente da dele foi o que provocou esse olhar pra dentro. No começo é difícil, os julgamentos surgem antes da aceitação. Mas o processo vale a pena. Acredito que o mais importante para um jovem nesse processo é isso: olhar pra dentro com honestidade e gentileza.
7. Como autora, você fala sobre a importância de aceitar a diferença e não se encaixar nos padrões da sociedade. Você acredita que Incógnito pode ajudar a criar um espaço mais inclusivo para as discussões sobre identidade e orientação sexual?
Acredito que sim. Incógnito é, no fim das contas, uma história sobre o primeiro amor. É uma história doce. Muitos leitores já me relataram que emprestaram o livro para os pais, terapeutas, professores, tios… De alguma forma, o livro abre um ponto de diálogo justamente por que, apesar de ser uma relação homoafetiva, os temas de autodescoberta, sentir-se deslocado ou “esquisito” e primeiro amor são experiências dessa etapa da juventude que muitas pessoas compartilham e com as quais podem se identificar, mesmo aqueles que não fazem parte da comunidade LGBTQIA+.
8. A escrita criativa é uma área que você se formou. Como a sua formação influenciou a forma como você aborda a criação de personagens e a construção de diálogos em Incógnito?
A formação acadêmica em escrita criativa impactou muito Incógnito. Quando eu comecei a escrever a fanfics, assistia aulinhas avulsas na internet sobre o assunto, que sempre me interessou, mas nunca tinha aprofundado os estudos no tema. Incógnito levou, no total, três anos e meio para ser finalizado. Foi no meio desse processo que eu iniciei a minha pós-graduação no Nespe. Rapidamente percebi como minha escrita ficou mais sofisticada após os estudos, especialmente os diálogos. Durante a adaptação de Incógnito para original, eu conseguia perceber a evolução — e tentei, junto com a Editora Violeta, padronizar a narrativa para ocultar essas mudanças, apesar desses mais de três anos de aprendizado e evolução textual.
Ainda hoje estou em processo de aprendizado. Sei que a literatura e a escrita nunca vão se esgotar para mim e sou apaixonada pelos meus estudos. Também ofereço mentorias e cursos para outros escritores, especialmente o pessoal do nicho das fanfics. São autores muito dedicados e com um potencial impressionante. Sei que trabalhar com escrita no Brasil é um privilégio e sou muito feliz no que faço.
9. No trecho do livro, Hector experimenta a sinestesia ao sentir algo por outra pessoa. Como você usou esse recurso para transmitir emoções complexas e as mudanças que Hector atravessa durante a narrativa?
Sinestesia é uma figura de linguagem poética na própria definição. É como o amor, uma mistura de sentidos que a gente se atordoa, sem saber se é toque, gosto, cheiro. Eu aproveitei que o Moonjae é um apaixonado por literatura e poesia para trazer esse ponto de vista “sinestesia é o que eu sinto quando estou com você”, ele explica, e Hector responde em pensamento: “eu pensei que fosse amor”. Acabou se tornando uma passagem do livro muito querida para os leitores.
10. Incógnito é um livro voltado para jovens leitores, mas também pode atrair adultos. Que tipo de mensagem você espera que todos, independentemente da idade, levem ao final da leitura?
Tenha a coragem de ser você mesmo. A gente vive se escondendo, se comparando, julgando os outros e a si mesmo. Isso adoece. Então seja a sua versão mais genuína.
11. Por fim, quais são seus próximos projetos como escritora? Podemos esperar mais histórias como Incógnito ou algo completamente diferente?
Como escritora, eu gosto de explorar diferentes generos literários e temáticas. Em 2024 publiquei de forma independente o meu segundo romance, Vinte Minutos e V, que tem uma proposta mais de prosa poética, uma narrativa mais adulta, recheado de reflexões profundas sobre o abandono, a vulnerabilidade, a arte e o amor. No momento, estou escrevendo minha primeira história de fantasia, que tem sido um desafio. Mas eu gosto de desafios e pretendo ainda explorar mais alguns gêneros como realismo mágico e contos, quem sabe? O certo é que não pretendo parar de escrever e espero que muitas outras histórias sejam publicadas e lidas no futuro.