Esquerda e o Cavalo de Troia identitário
Francisco Fernandes Ladeira
Um Cavalo de Troia ronda a esquerda brasileira. Trata-se do “identitarismo”, ideologia criada e difundida pelo imperialismo estadunidense, cujo principal objetivo é substituir a luta de classes (motor da história, segundo Marx) por movimentos de determinadas identidades (mulheres, negros, gays, lésbicas, transexuais, indígenas, obesos etc.). Seus ambientes de propagação são universidades públicas, telenovelas da Rede Globo, redação da Folha de S. Paulo, diretórios do PSOL (eventualmente do PCB e da UP), campanhas publicitárias de grandes empresas e redes sociais (com as famosas “lacrações” e a “cultura do cancelamento”).
Recorrendo ao pensamento da filósofa Nancy Fraser, podemos situar o identitarismo como parte do chamado “neoliberalismo progressista”, oxímoro utilizado para representar a aliança da corrente principal dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo e direitos LGBTQIA+) e altos setores empresariais (Wall Street, Vale do Silício e Hollywood). Segundo o sociólogo Wolfgang Streeck, em entrevista à Folha de São Paulo, “a discriminação por raça ou orientação sexual não é nada essencial para a estabilidade do capitalismo, que pode facilmente prescindir de tais discriminações e se juntar à batalha contra elas. [Haja vista] o apoio financeiro do banco Goldman Sachs ao ‘casamento para todos’ ou as consideráveis doações de empresas globais a uma organização como a Black Lives Matter”.
Feitas as devidas considerações sobre o identitarismo, é importante frisar que não busco neste texto, em hipótese alguma, subestimar as seculares lutas das minorias sociais, mas denunciar como determinadas pautas são sequestradas e manipuladas em benefício dos interesses das classes dominantes. Aliás, como será demonstrado mais à frente, o identitarismo não defende as minorias. Pelo contrário, suas ações visam, basicamente, garantir a ascensão de alguns poucos negros, mulheres ou LGBTQIA+ (o que se encaixa perfeitamente à ideologia da “meritocracia”) e neutralizar os setores historicamente excluídos, impedindo que se rebelem contra o sistema capitalista (em últimas instância, o grande motivo de suas condições de subalternidade). Consequentemente, os privilégios de poucos ficam garantidos; enquanto a pobreza de muitos é mantida.
Sobre os ambientes de propagação do identitarismo, citados no primeiro parágrafo, as universidades públicas cumprem um papel primordial. É no espaço acadêmico onde são cooptados os jovens (via de regra, politicamente ingênuos) que atuam como militantes desses movimentos e que produzem monografias, dissertações e teses sobre temáticas identitárias (que poucas pessoas vão ler!). Os mais afortunados terão acesso a algum intercâmbio em uma instituição de ensino renomada dos Estados Unidos, serão protagonistas de campanhas publicitárias de marcas famosas ou poderão fazer parte do seleto grupo dos “intelectuais identitários” (que possuem cadeiras cativas nos veículos de imprensa hegemônicos, seja como colunista da Folha de São Paulo, seja como presença constante em programas de televisão).
Os identitários também têm seu léxico próprio. Para qualquer tipo de debate, um identitário deve usar expressões como “lugar de fala”, “empoderamento”, “masculinidade tóxica”, “representatividade”, “apropriação cultural”, “racismo estrutural”, “interseccionalidade”, “decolonial” e, é claro, os famigerados pronomes neutros.
Como todo discurso hermético, arrogante e presunçoso, as falas identitárias são inacessíveis ao povão. São restritas ao âmbito acadêmico. Assim, cabe à grande mídia fazer com que a ideologia identitária chegue ao público amplo. Aí entram os produtos culturais da Rede Globo, sobretudo as novelas.
Como se sabe, a emissora da família Marinho possui um extenso histórico de representações pejorativas das minorias, apoio a golpes de Estado, anuência com a Ditadura Militar e criminalização da pobreza. No entanto, todo o passado (e presente) reacionário é apagado quando, na tela da vênus platinada, aparece um casal gay, uma mulher empoderada ou um preto ocupando espaços de poder. Desse modo, por meio do identitarismo, o maior grupo de comunicação do país consegue até causar uma impressão “progressista”. Discussões sobre questões materiais – como a real melhoria das condições de vida da classe trabalhadora urbana ou reforma agrária –, evidentemente, não são abordadas.
Nesse sentido, há duas décadas, em depoimento para o documentário A Negação Brasil, o ator Milton Gonçalves já dizia que a maior presença do elemento negro na mídia não era simples inclusão, mas tentativa de atrair um novo segmento para o mercado consumidor. Desde então, outras minorias também passaram a estar mais presentes nos meios de comunicação de massa. Mas não nos iludamos! Os motivos são os mesmos ressaltados por Milton Gonçalves.
Diante dessa realidade, empresas que historicamente exploram mão de obra alheia e contribuem significativamente para a degradação ambiental, ao incluírem negros, homossexuais e pessoas com deficiência em suas campanhas publicitárias, passam ao público a imagem de “amiga da diversidade”. Mais uma vez, a estética identitária é utilizada como álibi para limpar a barra dos poderosos. O capital pode continuar se reproduzindo e explorando, com a fachada aparentemente limpa.
Além da universidade, mídia e campanhas publicitárias, o identitarismo também se faz presente, como não poderia deixar de ser, na política partidária, sobretudo no PSOL, legenda orgânica da classe média à esquerda (que, tendo suas necessidades básicas satisfeitas, não precisa se preocupar com questões materiais; concentrando suas reivindicações ao campo discursivo e às pautas morais). Lembrando um trabalho do chargista Jota Camelo, enquanto a “esquerda raiz” pede “trabalhadores no poder”; a “esquerda nutella” (identitária) pede “língue neutre na novele das oite”.
O identitarismo, como todo movimento pequeno-burguês, é inerentemente impopular. Sua infiltração na esquerda faz com que o parte da população tome ranço desse espectro político, ficando vulnerável às investidas da extrema direita. Não foi por acaso que, nas eleições presidenciais de 2018, o bolsonarismo encontrou um terreno fértil para suas fake news nos discursos identitários da chapa petista (principalmente na figura da candidata à vice-presidência). Felizmente, no último pleito, Lula não caiu na armadilha; impediu que a chamada “pauta dos costumes” norteasse a campanha ao Planalto. Mas não há dúvidas que, em breve, o moralismo identitário será utilizado para atacar, “pela esquerda”, o governo petista.
Por fim, nas redes sociais, encontramos as facetas mais autoritárias do identitarismo. Qualquer indivíduo que, no espaço virtual, critique minimamente o identitarismo, não reze na cartilha do politicamente correto ou que aborde um determinado tipo de preconceito sem pertencer à minoria afetada (portanto, sem ter o tal “lugar de fala”), será sumariamente “cancelado” na inquisição identitária (inclusive, este será o destino do presente texto).
Para o identitário, somente suas opiniões (e a de alguns membros de sua “identidade”) importam. Lacrar no Facebook é essencial e a liberdade de expressão só deverá existir para aquilo com o que ele concorda. Portanto, “lugar de fala” nada mais é do que “lugar de cala”.
O identitarismo não é apenas um Cavalo de Troia. Cientificamente também não se sustenta. No livro O fascismo da cor: Uma radiografia do racismo nacional,
Muniz Sodré aponta que o racismo, no Brasil, foi “estrutural” somente até a abolição, quando havia uma sociedade escravagista, e o racismo provinha dos sistemas jurídico, político e econômico. Além disso, conforme explicou Sodré, em entrevista à CNN: “A luta contra o racismo não é contra estrutura abstrata, é concreta. Falar que o racismo é estrutural passa a impressão de que ‘não há nada a fazer’ a respeito”.
Por sua vez, Jessé Souza, em seu Como o racismo criou o Brasil, denuncia que a ideia de “lugar de fala” se baseia na falsa crença de que o oprimido conhece melhor do que ninguém a opressão que sofre. “Acreditar nessa tolice é não compreender absolutamente nada sobre como funcionam as formas de humilhação e opressão na sociedade – e, portanto, contribuir para a sua continuidade”, afirma Jessé.
Na lógica do “lugar de fala”, uma mulher machista, um gay homofóbico ou um negro contrário às cotas e que negue a existência de racismo no Brasil têm mais propriedade para falar sobre preconceito do que qualquer outro indivíduo que não pertença a uma determinada “identidade”.
Simone de Beauvoir (ironicamente uma das autoras preferidas dos identitários) dizia: “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”. Pois bem, os identitários são esses cúmplices. Desorganizam os oprimidos. Com suas pautas difusas e evasivas, elegem vários inimigos: o “homem”, o “branco”, o “heterossexual”, o “aquecimento global”. Porém, o burguês, ou seja, o grande capitalista, nunca é mencionado como alvo a ser combatido. O capitalismo jamais é questionado. Por que será?
Marx e Engels, em O Manifesto comunista, preconizavam: “Trabalhadores do mundo, uni-vos!”. Por sua vez, os identitários, “pós-modernos”, clamam: “trabalhadores do mundo, desuni-vos”!”.
Assim operam os movimentos identitários: não buscam a libertação coletiva, tampouco de sua minoria, mas a ascensão individual. Um antigo tratado militar chinês, do século V a.C., conhecido como Método Militar de Sun Tzu, ensinava que, num confronto, não basta fortalecer seu exército, é fundamental enfraquecer o inimigo. No cenário político contemporâneo, para a direita, fortalecer seus quadros não é suficiente, é preciso desarticular e despolitizar a esquerda, por meio da agenda identitária. Dividir para conquistar. Em suma, com a esquerda identitária, a direita pode dormir tranquilamente. A revolução nunca virá!
Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Unicamp