Entrevista: Suellen Vasconcelos e Tati Franklin, cineastas

Entrevista: Suellen Vasconcelos e Tati Franklin, cineastas

1. Suellen e Tati, como foi a experiência de conhecer Mel Rosário e decidir contar sua história em um documentário?

O projeto começou num encontro entre o produtor Thiago Moulin e Mel Rosário. Ele rodava um telefilme sobre urbanidades e se deparou com o protesto da Mel em frente à igreja no centro de Vitória. A Mel teria 5 minutos no filme, acabou tendo mais tempo de tela. Depois desse encontro ele ficou muito impactado com a história dela e produziu um curta-metragem contando seu caso com a igreja. Nesse processo ele se deu conta que a história da Mel renderia um longa metragem mas entendeu que não dirigiria o filme. Ele queria migrar da direção para produção executiva e precisava encontrar alguém para assumir a direção desse novo projeto. Nessa época a gente estava com o Transvivo (um curta sobre transmasculinidades) no circuito de  festivais. Ele então fez o convite para dirigir o Toda Noite Estarei Lá. Em seguida inscrevemos o projeto no edital de Produção de Longa-Metragem Documentário do Funcultura da Secult-ES  por meio do Fundo Setorial do Audiovisual da Agência Nacional de Cinema (Ancine) e fomos contempladas. Assim,  demos início às primeiras etapas da construção do filme.

2. O que mais chamou a atenção de vocês na história de Mel que fez com que acreditassem que ela merecia ser contada em um longa-metragem?

Nós conhecemos a história da Mel pela mídia local que fez a cobertura do caso de agressão cometido por membros da igreja. Nós a conhecemos pessoalmente numa mostra promovida pelo curso de Cinema da UFES. Mel era uma das personagens de um filme dirigido por um amigo e ela estava na sessão. Foi aí que nos encontramos e conversamos um pouco sobre sua história.

Então a Mel já tinha participado de dois curtas e um telefilme, mas ela ficou animada em protagonizar um longa-metragem. Ela dizia que era importante contar essa história naquele momento e que o movimento que o filme traria para sua vida também era uma forma dela se proteger porque acreditava que a igreja iria recuar com as ameaças se soubesse que fariam um filme sobre este conflito. Ela dizia que “eles vão pensar duas vezes antes de fazer alguma coisa comigo agora que vocês estão filmando”.  Estar em evidência era uma forma de proteção também. Nessa altura ela se sentia muito injustiçada porque apesar da repercussão na mídia sobre o caso e os processos judiciais que ela abriu contra a igreja,  ela não vislumbrava um cenário minimamente justo com a devida punição aos seus agressores ou o seu direito de frequentar a igreja garantido. O filme se tornou, de alguma forma, parte do combustível que movimentou a sua luta contra essas injustiças. Nesse processo ela encontrou seu ativismo também.

3. Quais foram os maiores desafios que vocês enfrentaram durante as filmagens, especialmente em um ambiente tão tenso como a porta da igreja?

Acho que a gente teve vários desafios no filme, desde lidar com  personagem/objeto que não podíamos filmar, no caso da igreja e de seus membros à viver uma pandemia no meio do processo todo. Mas acho que era um filme muito exaustivo emocionalmente também, o SET era sempre muito tenso e insalubre e muitas vezes, o clima da porta da igreja era hostil. Estar lá com a Mel jogava luz sobre um problema que eles não queriam lidar, porque o protesto dela já incomodava, mas ter uma equipe filmando isso era um sinal de que alguém se importava, de que ela e a luta dela eram  importantes. Então a nossa presença incomodava e a gente sabia disso. Com o tempo fomos aprendendo a nos posicionarmos de forma que a gente pudesse proteger o campo de visão uma da outra, pra isso a gente ficava de costas uma para a outra pra cobrir os 360º do nosso entorno. Além disso, viver junto com a Mel as idas e vindas dos processos judiciais e o perdurar das injustiças, enfim, era tudo muito intenso e mexia muito com a gente também. A gente acabava absorvendo essa vivência pra além do filme, assumindo algumas responsabilidades que estavam ao nosso alcance, porque a nossa relação era para além do filme mesmo… 

Ficamos imersas nesse processo do filme por muito tempo, tanto pelo processo do filme em si quanto pelos dois anos de Pandemia. O tempo era um fator que era um aliado do filme e é importante lembrar que a gente só conseguiu filmar por tanto tempo porque reduzimos a equipe e assumimos outras responsabilidades. Então poder registrar por um longo período de tempo e acompanhar esse  tempo passar era também um desafio porque já estávamos cansadas emocionalmente e o trabalho se alongava pra além do recurso do projeto. 

4. Como a pandemia da COVID-19 impactou o processo de produção do documentário?

A pandemia foi impactante não só pelo fato de termos parado completamente as filmagens e isso alongou o tempo de produção do filme, mas também porque impactou a situação da Mel com a igreja. Antes da pandemia ela havia ganhado na justiça o direito de frequentar os cultos. Mas com a pandemia, a igreja aproveitou que havia restrições para a quantidade de pessoas nos cultos e acabou por impedi-la de entrar novamente, especialmente porque o sistema de justiça, os processos em tramitação também acabaram sendo suspensos, então tinham margem pra isso. Sabiam que não ia dar em nada. Isso impactou totalmente a narrativa do filme e Mel, que antes havia ganhado o direito de voltar a frequentar à igreja, passou novamente a estar do lado de fora da comunidade e voltou a fazer seus protestos. Em determinado momento, quando as coisas se flexibilizaram na pandemia, voltamos a filmar e passamos a ir para o front com ela, filmando esses protestos que ela voltou a fazer. 

Desde então, Mel nunca mais entrou na igreja e segue a protestar. 

5. O documentário já foi premiado em diversos festivais. Qual é o sentimento de ver o trabalho de vocês sendo reconhecido dessa forma?

É muito maneiro ver que a história toca as pessoas, acho que especialmente os prêmios de atuação que a Mel ganhou são muito simbólicos, primeiro porque não é comum esse prêmio ir para documentários e depois porque de fato ela tem uma entrega absurda diante das câmeras. No Olhar de Cinema, o júri foi unânime e, em meio a tantos filmes de ficção, decidiram premiar a Mel justamente com esse critério: “ o que ela entrega diante da câmera”. A Mel é muito performática e sabe bem o que quer mostrar, a gente também propôs coisas durantes as filmagens, a partir dessas intenções dela – situações que não eram possíveis dela realizar na vida mas que ela desejava viver e que podiamos proporcionar que ela vivesse no filme (como o momento em que ela compra um carro, por exemplo)  então ela realmente atua em algumas sequências e esse reconhecimento foi muito massa de ver! 

6. Vocês podem nos contar mais sobre a relação de Mel com a igreja neopentecostal e como isso influenciou sua vida e luta?

A Mel vem de uma família totalmente evangélica, ela foi criada nesse contexto, então estabeleceu sua fé nesse contexto e sua subjetividade é muito atravessada por isso. Acho que para além da fé também, existe uma relação de pertencimento importante. Fazer parte da comunidade evangélica também é, de certa forma, um ponto de conexão inclusive com a sua família, que por vezes é muito conservadora. 

 A Mel se entende como uma “ativista pela vida”, ela luta em diversas frentes, mas especialmente nas pequenas ações cotidianas, nas pequenas redes. Naturalmente a fé atravessa essa luta e como ela vê o mundo. 

7. Como diretoras, qual é a importância de contar histórias da comunidade LGBTQIAP+ para vocês?

A nossa motivação pra fazer esse filme enquanto realizadoras queers é porque a gente acredita que este filme propõe um diálogo com as pessoas que pensam que existem vidas que valem menos que outras, que desumanizam a população lgbtqiap+. o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas transexuais no mundo. em 2020 foram 175 assassinatos, que representa um assassinato a cada dois dias. Se não contarmos essas histórias, se não existirmos nas telas, se não construirmos um imaginário, uma memória dessas vidas, a gente não muda essa realidade. E é por isso que Toda Noite Estarei Lá é um doc de impacto porque quando a gente coloca a Mel construindo a própria luta, sonhando com um futuro melhor a gente tá dizendo que é possível ressignificar essa lógica que desumaniza e oprime. É uma forma de dizer que a luta dela é legítima e que enquanto não houver justiça para todos temos que continuar a lutar pelos nossos direitos e denunciar essas injustiças. 

A Mel acredita que só há transformação com intervenção, com construção de diálogo. Quando se tem algum privilégio a gente geralmente prefere não dialogar. Assim criamos nossas bolhas onde a gente só conversa e ouve quem pensa como nós. O que o ativismo da Mel nos lembra é que o diálogo tem que existir e ela faz isso da forma que é possível pra ela: porque ser vista na rua é um diálogo, porque ela levantar um cartaz na porta da igreja que a expulsou é um diálogo, porque toda noite ir pro culto, estar lá, é a forma que ela consegue dialogar com essas pessoas que são as que mais precisam ouvir. 

Nós também acreditamos que só há transformação com intervenção e fazer esse filme também é uma forma de não se calar diante das injustiças. Existem filmes que a gente quer fazer e tem filmes que a gente precisa fazer. 

8. O que vocês esperam que o público aprenda ou sinta ao assistir “Toda Noite Estarei Lá”?

A Mel tinha um desejo muito grande de contar essa história. Muito porque as pessoas tendem a não legitimar sua luta a partir da ideia de que não devemos estar nos lugares que não nos querem, que nos oprimem.  Então esse sempre foi nosso primeiro objetivo: a gente tinha que trabalhar a montagem no sentido de garantir que o público não duvidasse da legitimidade da luta da Mel. 

Primeiro porque todo mundo tem uma opinião sobre o caso, a gente sempre ouve dizer “mas por que ela quer frequentar esse lugar que não a quer?”

Mas a gente foi entendendo que a lógica da Mel é o oposto disso, ela quer propor uma intervenção e estar e justamente nesse espaço onde não a querem, porque acredita que é ali que a transformação precisa acontecer. Acho que isso é um ponto de conexão entre nós e ela. A gente também acredita que com nossos filmes a gente pode propor transformações de pontos de vista. 

E fazer esse filme, pra Mel, é ter a chance de contar a sua própria versão, contar do seu ponto de vista, como ela se sente, como ela observa e cria o mundo à sua volta. E isso é importante porque é a subjetividade dela que é encerrada todos os dias em diversos espaços de existência. 

9. Quais foram as maiores dificuldades enfrentadas por Mel durante o período de filmagem e como isso afetou a produção do documentário?

A gente acredita que a agressão que Mel sofreu na igreja, de alguma forma mudou a sua vida. Porque a partir deste acontecimento, ela teve que buscar a justiça para garantir o direito de frequentar seu espaço de fé. E isso mudou o rumo da vida dela, porque antes da agressão,  ela se dedicava ao trabalho, a maior parte das clientes eram frequentadoras da igreja e, a partir do momento que Mel passou a enfrentar a igreja, tanto na justiça quanto por meio dos protestos, ela viu o movimento do salão cair, foi vítima de várias ameaças, sofreu um processo sob a acusação de perturbação do culto por causa dos protestos que ela faz em frente à igreja, entre tantas situações horríveis que ela vivenciou. Além disso, o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, então a vida dela nunca foi fácil, só que agora ela teve que lidar todos os dias com esse contexto extremamente violento. Somado a isso, veio a pandemia trazendo também um cenário financeiro muito difícil, principalmente para profissionais autônomos como ela. Então grande parte do processo de produção do filme era atravessado por diversas preocupações, e por isso a gente buscava sempre uma comunicação estreita com ela. Checávamos se ela estava em segurança, os status dos processos judiciais e seus desdobramentos, a gente foi a audiências para acompanhar o caso, além de algumas consultorias jurídicas para entender um pouco melhor como se portar naquele contexto. A gente sabia que a Mel é correria, que o clima do set era hostil e que a gente tinha que se adaptar a essa realidade. Então, na prática, a gente tinha que estar muito atentas a tudo o que acontecia antes, durante e depois das gravações.

10. Como foi a recepção do filme em festivais internacionais como o Wicked Queer: The Boston LGBT Film Festival?

O Wicked Queer foi o nosso primeiro festival internacional e levamos uma menção honrosa. Ficamos muito felizes porque esse retorno nos mostra que a história também chega e toca pessoas para além do contexto do Brasil. 

11. Em sua opinião, quais são as principais barreiras que a comunidade trans enfrenta no Brasil atualmente?

A principal barreira é viver num país que mata uma pessoa trans a cada 3 dias. A expectativa de vida de transexuais no Brasil é de 35 anos. Então a gente tá falando de uma população que é negada o direito de existir. Nesse sentido, infelizmente, para grande parte desse grupo, são negados direitos básicos, muitos são obrigados a deixar suas casas e famílias muito cedo e passam a viver em condições de vulnerabilidade. As dificuldades vão desde ter um nome compatível com sua identidade de gênero, passando por atendimento médico especializado, acesso a emprego e a educação, atendimento de saúde, redes de apoio, entre outros. 

12. Como vocês lidaram com as possíveis ameaças ou represálias durante a produção do documentário?

Ao longo do processo do filme tivemos consultorias jurídicas que nortearam a decisão de usar o blur no rosto dos membros da igreja. Essa escolha não foi um recurso narrativo/estético e sim uma orientação jurídica com o objetivo de proteger a identidade das pessoas que frequentavam a igreja.

13. Vocês acreditam que a exposição trazida pelo documentário ajudou a proteger Mel de futuras agressões ou ameaças?

Sim. Era um ponto que a Mel sempre esteve atenta. Ela dizia que o filme, de alguma forma, trazia um certo tipo de proteção, porque agora a história dela seria mais conhecida e seus agressores não teriam mais coragem de fazer algo contra ela. Essa fala denuncia uma dinâmica de violência que é naturalizada e expõe a fragilidade do nosso sistema de justiça também. Além de ter o seu direito de frequentar a igreja negado, ela ainda é um alvo pros seus agressores que estão impunes. 

14. Vocês acham que o lançamento do filme durante o mês do Orgulho LGBTQIA+ tem um impacto especial? Por quê?

Com certeza tem um impacto especial porque é um momento simbólico para comunidade LGBTQIAP+. Nesse período existe uma abertura maior pra ouvir essas vozes, conhecer essas personagens e compor um coro que pode ser ouvido com mais atenção e cada vez mais longe. É um momento onde a gente pode ocupar espaços que muitas vezes não nos permitem ser ocupados. A história da  Mel traz interseccionalidades que muitas vezes se encontram em campos (que não precisavam  ser)  opostos. Ela é uma travesti evangélica. Algumas igrejas atuam como “amoladores de facas” contra  comunidade LGBTQIAP+ incitando a violência a partir do fundamentalismo religioso, e por esse motivo, muitas pessoas queers que cresceram em comunidades evangélicas são afastadas desses espaços.  Como consequência a gente tem um cenário onde grande parte da comunidade LGBTQIAPN+ não se conecta, ou até mesmo para se defender, prefere não dialogar com essas religiões. E a Mel descobriu o seu ativismo nesse lugar de intervir nessa lógica. Ela se afirma no lugar da fé e não abre mão de se afirmar também como uma travesti nesse lugar.  Então, trazer essa história pra esse momento do mês do Orgulho LGBTQIA+´é uma forma de propor esse diálogo que nem sempre a gente vai ter abertura pra isso.

15. O que os levou a trabalhar juntos neste projeto específico, e como foi a dinâmica entre vocês duas como diretoras?

A gente já tinha vivido essa experiência de dividir a direção em outros trabalhos e a forma como isso se deu em Toda Noite Estarei Lá aconteceu naturalmente. A possibilidade de trocar e ter uma segunda opinião, o apoio mútuo para nortear as decisões e escolhas do filme traziam um conforto pro processo, que em si,  era muito complexo. E por isso pensar juntas sobre os contatos com a Mel e sua família, sobre estratégias de abordagem, entender os movimentos que a gente vivia enquanto filmava, pandemia, as mudanças que o Brasil enfrentava e como isso impactava no contexto do filme, além das mentorias ao longo do processo, nos ajudou a chegar juntas nas melhores escolhas para o filme. Além disso,  a equipe técnica se resumia à gente também. A fotografia, o som e a direção do filme dependiam da nossa performance no set,  mas a gente já sabia trabalhar nesse formato e por isso tivemos segurança e sintonia pra tocar o filme. Costumávamos usar o celular como rádio nas gravações do protesto da Mel em frente à igreja. A gente fazia uma ligação de telefone e podia se comunicar de maneira mais direta, sem chamar muita atenção durante as gravações. Nessas ocasiões a gente se posicionava uma de costas para outra pra conseguir cobrir todo campo de visão da rua e assim perceber com mais exatidão a movimentação no entorno da igreja, o que nos dava mais independência e agilidade pra se posicionar e se movimentar nesse espaço. 

16. Como foi trabalhar com a equipe reduzida e assumir múltiplas responsabilidades durante as filmagens?

Nossa trajetória no audiovisual vem muito desse lugar de assumir diversas funções e responsabilidades. Filmes Fritos é um selo criativo de duas pessoas  queers que, para conseguirem  produzir, fazem um pouco de tudo.  Nós tivemos algumas diárias com a equipe maior, mas essa estrutura não nos dava condições de acompanhar a dinâmica da Mel com mais liberdade e agilidade. Era mais difícil se aproximar e conseguir uma certa intimidade num formato maior. Além disso, o orçamento do filme não comportava uma equipe maior gravando por dois anos o desenrolar da história que a gente queria contar.  Somado a isso, veio a pandemia onde reduzir o número de pessoas passou a ser mais seguro também. Então, com o tempo a gente foi entendendo que o ideal seria uma equipe mínima. Tivemos sempre ao nosso lado o nosso produtor, Thiago Moulin e a Graúna Digital abrindo os caminhos pra gente, sempre nos dando muita liberdade pra escolher e tínhamos segurança porque ele apoiava nossas escolhas. 

17. Qual foi a música mais tocada na trilha sonora do set de filmagem?

Sulamericano, do Baiana System. Por vezes era muito difícil ir pra esse set, ir pra frente da igreja naquele cenário hostil, e muitas vezes, também tinha todo o contexto pandêmico e o caos bolsonarista. Era um momento muito duro. Muitas vezes quando estávamos indo gravar, a gente colocava essa música, sentíamos que nos dava um gás pra seguir firmes: “Nas veias abertas da América Latina. / Tem fogo cruzado queimando nas esquinas/ Um golpe de estado ao som da carabina de fuzil/ Se a justiça é cega a gente pega/ quem fugiu!” 

Era um filme de rua, a luta desse filme acontece também na rua. A gente se sentia conectadas também com algo maior. Essa música tocou bastante nas idas pro set. 

18. Vocês acreditam que o documentário pode mudar a percepção de membros da igreja neopentecostal sobre a comunidade trans?

A gente acredita que a história da Mel é única, mas ela representa os dilemas que a nossa sociedade vive. Acompanhando sua história a gente vê um rastro do ultra conservadorismo e da violência contra uma determinada população. A Mel é uma mulher de fé que luta pra ter acesso aos seus direitos básicos. Ela é impedida de entrar no seu templo  por ser uma travesti. O Brasil ainda é o país que mais mata transexuais no mundo. Segundo o dossiê da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil) ,  em 2023, o Brasil teve em média 12 assassinatos de trans por mês, com aumento de um caso por mês, em relação ao ano anterior. Dos 145 homicídios ocorridos no ano passado, cinco foram cometidos contra pessoas trans defensoras de direitos humanos. A Mel é uma travesti defensora dos direitos humanos. Ela enfrenta todos os dias uma sociedade que oprime e desumaniza pessoas LGBTQIAP+. Muita gente se apoia nos discursos fundamentalistas de algumas igrejas para justificar a LGBTFOBIA. A gente costuma dizer que a Mel é uma outsider tanto no contexto da igreja e da religião com  a qual ela se identifica, porque essa igreja não acolhe pessoas como ela,  quanto no contexto progressista que tem extrema dificuldade de dialogar com as religiões neo pentecostais por exemplo. A luta da Mel propõe um encontro entre esses dois mundos e a gente acredita que quando as pessoas conhecem essa história elas reavaliam seus papeis nesses contextos. Então enquanto diretoras lésbicas a gente acredita que que só existe transformação através de intervenção. Acreditamos que esse filme propõe um diálogo com quem pensa que existem vidas que valem menos que outras e que se não contarmos essas histórias, se não existirmos nas telas, se não construirmos um imaginário diferente, uma memória dessas vidas, a gente não muda essa realidade. Quantas heroínas travestis existem no cinema brasileiro? Quantas travestis a gente conhece? Quantas frequentam a nossa casa? A Mel também está nesse lugar de representar uma população sub-representada no nosso imaginário e nas nossas telas. 

19. Quais foram as reações mais extremas que vocês receberam em relação ao documentário?

Até agora o filme foi exibido em festivais de cinema, muitos deles, festivais de nicho, como o Mix Brasil, For Rainbow e Wicked Queer. Nesses espaços o filme tem sido muito bem recebido, há um acolhimento genuíno do público com a Mel e com o filme. O que tem marcado as sessões (e que por vezes nos surpreende) é que sempre tem alguém que se conecta com a Mel no lugar da fé. Não é raro no momento do debate ou no final de alguma sessão alguém do público dizer que veio de família evangélica e que também sofreu preconceito e acabou se afastando da igreja e procurando acolhimento em outros espaços. 

20. Suellen e Tati, quais foram os momentos mais importantes das suas carreiras até agora?

Acho que a experiência que o Toda Noite nos proporcionou viver foi um grande momento da nossa vida profissional. O filme nos abriu janelas e portas e possibilidades de criar, estudar, inventar e principalmente viver essa história com a Mel pra além das telas. Isso nos transformou. 

21. Quais cineastas ou documentaristas influenciaram o trabalho de vocês?

Acho que o trabalho do Adirley e a estética de autoficção do cinema mineiro esteve no nosso imaginário durante a construção do filme.

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