Entrevista: Rafael Beibi, cantor e compositor
1. Rafael, o título do seu álbum “Pra não cair na beirada do mundo eu aprendo a voar e dou a volta nele” é bastante poético. O que ele significa para você?
Eu quis chamar a atenção das pessoas pro poder da poesia mesmo, o poder que as palavras tem. Às vezes me percebo tão no automático, zapeando no celular e lendo frases curtas, títulos de matérias, enfim, interagindo com conteúdos sem aprofundamento nenhum. E esse título vem pra cutucar esse lugar na gente. Toda vez q falo o nome do disco pra alguém, percebo uma surpresa e uma curiosidade por ele ser longo e diferente do convencional, e essa estranheza inicial convida as pessoas a refletirem sobre o significado dessa frase. Não vou me alongar muito aqui sobre os vários significados que atribuo a esse título pq também quero que cada um interprete do seu jeito. Mas dando um significado mais poético pra ele, como vc pontuou na pergunta, gosto de dizer que a música e a poesia, assim como outras formas de expressão artística, nos dão o poder de imaginar respostas divertidas e fantásticas para os problemas com os quais nos deparamos. E nessa última década percebo que houve uma crescente onda de medo e de pânico moral perturbando as pessoas, deturpando conceitos, distorcendo fatos… a beirada do mundo representa esse medo, e as asas que a gente cria pra aprender a voar e escapar disso é um convite a nos sensibilizarmos mais e valorizarmos o poder transformador e curativo que a arte tem.
2. Como foi o processo de composição das músicas do disco? Teve alguma faixa que foi mais desafiadora de criar?
Gravar um disco solo é uma vontade antiga, então tem vários anos já que estou compondo pra esse fim. “Carne Viva”, single que lancei primeiro, foi escrita em 2017. E de 2017 a 2023 fui construindo as outras letras e melodias. Acho que a música mais difícil de dar forma foi a que dá título ao disco. É uma música que soa mais simples, bem festiva e até meio carnavalesca, e acho que essa relativa simplicidade é desafiadora também. Eu escrevi a letra dela com o André Tagliatti, parceiro de composições desde o primeiro disco que gravei na vida, e a cereja do bolo que faltava foi uma contribuição do Alysson Salvador, que fez uma ponte especial para um solo de violino do convidado Nicolas Krassik.
3. O seu single “Carne Viva” mistura xote com rock’n’roll. Como você chegou a essa fusão de estilos?
Pra mim essa é uma mistura muito intuitiva, quase inevitável. Acho que o xote é sempre percebido, de forma geral, como uma música feliz, mas note que sempre tem um apertinho no peito, subliminar ou não. Esse nózinho no peito é que dá aquele tempero diferente, faz a gente dançar mais apertado, mais juntinho. E assim é a vida, a gente não é só alegria ou só tristeza. Vivemos nos equilibrando entre vários momentos e estados de espírito, e essa é a beleza da coisa pra mim. Quando eu tive a ideia de “Carne Viva”, veio essa harmonia bem simples, essa repetição de um motivo de 3 power chords (que é quando a gente toca só as cordas mais graves da guitarra), que me remeteu bastante ao blues. E as influências dessa fusão são todos os grandes mestres da música brasileira que já nos apresentaram a essa antropofagia, e são muitos, não consigo citar todos. Mas tem dois nomes que preciso citar, pois são influências mais diretas nesse som: Alceu Valença e Cátia de França, dois artistas que fizeram muito a minha cabeça.
4. O álbum conta com a participação de músicos renomados, como Nicolas Krassik e Félix Robatto. Como essas colaborações influenciaram o resultado final?
Os 3 convidados do disco foram de muita importância pra acentuar o significado das músicas em que participaram, e também têm um significado para além da música, pois são pessoas muito generosas que encontrei na caminhada e se tornaram meus amigos. O Félix Robatto conheci pessoalmente em 2016 quando fui tocar em Belém e desde esse encontro sempre mantivemos o contato. Então eu tinha essa música “Carimbó no Paraíso” escrita para o disco e não tive dúvida, convidei o Félix pra botar uma guitarrada e ele também se ofereceu pra gravar umas percussões. Sem esse molho paraense, com certeza a música não seria tão balançada. O Nicolas Krassik eu ouvi os discos até riscar, é um cara que acompanho como fã desde o começo da minha carreira na música. Depois tive o prazer de tocar junto e passamos a ter mais contato, e quando escrevi “Pra não cair na beirada do mundo eu aprendo a voar e dou a volta nele” pensei logo no Nicolas pra participar, pois é uma música cheia de energia, e ele é um cara que tem muita energia tocando. Além disso, ele é um forrozeiro que adora um rock´n´roll, então não havia combinação mais perfeita pra esse som. E o Guegué Medeiros é um irmão que a música me deu de presente, e participou tocando bateria na faixa “Lampião no Sertão com Dinamites”, um som instrumental pesado que não podia ter outra participação que não fosse ele. Mas vou deixar pra falar mais do Guegué depois, pois tem uma pergunta direcionada pra ele hahahah.
5. Você mencionou que suas músicas falam de amor e problemáticas contemporâneas com uma pitada de ironia. Pode nos dar um exemplo de uma letra que reflete isso?
Falar de amor é inevitável pois o amor, em todos os sentidos, nos move, nos transforma, faz a gente feliz, faz a gente sofrer, enfim, a gente é feito desses altos e baixos que a vida apresenta. E falar das problemáticas contemporâneas é inevitável também, pois eu adoro transformar discussões, problematizações em letras, nem que essa discussão não esteja muito aparente. Música pra mim é terapia, é mantra, é festa, é pra afogar as mágoas… ela tem muito poder sobre as pessoas. É só a gente olhar pro tanto de gente que usa a música como forma de se expressar nas redes sociais, por exemplo, ou pro significado que determinadas músicas tem na vida de uma pessoa. Então, o primeiro convite que faço numa música é a curtir a música em si, é fazer a pessoa ter vontade de cantar junto, de ser prazeroso deixar a música te envolver, te atravessar. E aí quando a pessoa já estiver cantando junto e se divertindo com o som ela pode também, se quiser, dar uma viajada nas letras, nas proposições sutis (às vezes não tão sutis) que faço sobre alguns temas.
Um exemplo? Trecho da faixa título: “Mas 2 e 2 sempre são 4 / E isso não muda só pra te agradar / E o mundo segue na ciranda / Mesmo quem não dança também vai girar”.
6. A faixa “Pé D’Água” fala sobre o poder das festas e ritmos populares. O que essas tradições representam para você pessoalmente?
Essas festas populares representam pra mim um sentido de comunidade que está se perdendo muito com o mundo digital. Quando eu era criança eu morava em uma rua onde os vizinhos se organizavam pra fazer uma festa junina comunitária, cada família levava um prato de comida, tinha uma pessoa responsável por organizar a criançada pra dançar a quadrilha, era muito lindo. E quando a gente, como sociedade, fica tão fragmentado como estamos, cada um na sua bolha, a gente perde tanto! Ao mesmo tempo, não culpo as pessoas pela dificuldade em viver em comunidade, porque a gente tem tão pouco tempo! Ter 2 ou 3 empregos pra conseguir ter uma renda mínima é um absurdo que está sendo normalizado, a gente não tem mais tempo na rotina pra saborear o ócio, o descanso. Quando sobra um tempinho no fim de semana, a gente tá tão exausto que só quer descansar (isso pra quem consegue ter fim de semana). Então acho que essa discussão sobre festas populares está diretamente ligada à nossa relação com o nosso descanso, nosso tempo pra saborear coisas que não sejam só ligadas a estar “produzindo valor” o tempo todo.
7. Como foi a experiência de gravar no estúdio Canto da Coruja? Houve algum momento marcante durante as gravações?
O Canto da Coruja é um lugar maravilhoso! É um estúdio que fica no meio do mato e não tem outra coisa pra fazer a não ser se dedicar à música ou conversar com os parceiros de som. Além de gravar o disco inteiro lá, o Ricardo Prado (dono do estúdio) também mixou e masterizou o disco. Acho que nunca tinha ficado tão satisfeito com uma mix e master em toda minha vida como artista. Os dias em que estivemos lá foram muito bem tranquilos e acho que só o fato de ficar focado na música sem muita interferência externa já é bem marcante!
8. A produção do álbum ficou a cargo de Guegué Medeiros. Como foi trabalhar com ele e qual foi a contribuição dele para o projeto?
O Guegué Medeiros é uma pessoa muito importante pra realização do meu disco e no impulso pra iniciar meu projeto solo. É um artista com uma sensibilidade foda e teve muito cuidado em entender o que eu queria passar em cada faixa do disco, conduzindo o processo de produção com muita maestria e tranquilidade. Ele também gravou as baterias e percussões mais suingadas que já ouvi na vida e eu só posso dizer que tenho muita sorte em ter encontrado esse parceiro de som que, além de tudo, se tornou um grande amigo. Também queria citar os camaradas que fizeram os arranjos das músicas junto comigo, lapidando os sons e tocando muito ao vivo por aí: Matheus Tagliatti no contrabaixo, parceiro de som e de uma amizade de 2 décadas, que me ajuda a tirar todas as ideias do papel; Daniel Zivko na guitarra, um cara sensível e talentoso que também ajuda a pesar a mão no rock´n´roll; Ramses Paraguassu, um baita pianista com influências eruditas e populares, com quem inclusive tenho um duo instrumental chamado “Dois a tempo”; e Rafa Virgulino, um amigo querido que toca uma sanfona pé de serra pesada, mas também tem um ouvido impressionante pra se ligar a outros tipos de som.
9. Você é fundador da Banda Zaíra e agora lança um trabalho solo. Quais foram as principais diferenças e desafios dessa transição?
Um desafio grande é sempre a dúvida se vou continuar tendo ideias legais, conseguir fazer melodias e letras cativantes, enfim, aquele friozinho na barriga básico. Mas com a pausa que a Zaíra deu na carreira, rolou um processo muito espontâneo de abrir a cabeça para novos horizontes, voltei a estudar bateria, que é um instrumento que amo e o primeiro que toquei numa banda (e inclusive faço alguns shows hoje em dia tocando bateria e cantando) e essa abertura pra outras ideias e outras parcerias musicais foi muito rica. Redescobri alguns talentos que esqueci que eu tinha e até dei uma descansada nas composições. Enquanto as composições descansavam, fiz um projeto misturando música e teatro (chamado Beatles Cordel), voltei a postar vídeos no meu canal sobre zabumba (o Zabumblog) e aí o Guegué, que eu chamei pro Beatles Cordel, me convidou pro Fuá do Guegué, uma bandona maravilhosa. Todas essas coisas novas me oxigenaram a mente e o corpo, até chegar o momento em que voltei a compor e senti que tinha músicas legais pra gravar. E esse disco tem toda uma gestação envolvida, porque comecei a gravar um mês antes do meu filho nascer e vai ser lançado um mês depois do aniversário de um ano dele!
10. O forró contemporâneo de sua banda já foi bem recebido na Europa. Quais são seus planos para o lançamento e divulgação deste álbum solo internacionalmente?
Com a Zaíra fiz duas turnês europeias e foi lindo, tinha muita gente cantando minhas composições na Europa. Tocamos em um festival de forró pra 2.000 pessoas em Paris (Festival Ai Que Bom), com pessoas de todo canto da Europa cantando junto, foi impressionante! Agora quero articular uma ida pra Europa pra mostrar as músicas novas, ir pra lá e vivenciar isso com meus novos parceiros de banda! Já estou mexendo uns pauzinhos, quem sabe meu filho passa o aniversário de 02 anos na Europa acompanhando minha turnê, né?
11. Você acha que a música regional nordestina ainda enfrenta preconceito no cenário musical brasileiro?
Com certeza existe um preconceito, embora eu ache que a música nordestina tenha ganhado mais espaço do que tinha há 20 anos atrás. Porém, uma coisa que me incomoda muito é como as pessoas sempre botam música regional nordestina numa prateleira meio folclórica, como se todo forró do mundo só existisse em junho e julho, e ficasse hibernando no resto do ano. Isso também não deixa de ser um preconceito. Gosto de fazer um paralelo com o blues, que é uma música regional norte americana. As pessoas só ouvem blues em uma determinada época do ano? Lógico que não, tem blues pra todo lado em toda época do ano. Tem banda brasileira de blues tocando de todo jeito, em todo lugar. Então acho bem louco como uma música regional gringa como o blues é difundida e aceita como uma coisa normal, do dia a dia, que você ouve no carro, no restaurante, nas casas de shows, etc e o forró continua, pra grande maioria das pessoas, ocupando esse lugar de música folclórica, música de festa junina. Pra mim Luiz Gonzaga e BB King tem a mesma grandeza, a diferença é que um vem de um país que colonizou e o outro é do país que foi explorado. Isso não muda a admiração que tenho por qualquer música do mundo, ouço muita música gringa desde sempre. Mas acho importante pesquisarmos o porquê de certas coisas serem como são.
12. Como você vê a influência do forró tradicional no atual cenário da música pop brasileira?
Acho que os artistas da nova geração tem flertado mais com o nordeste, assim como flertam com o norte também. Hoje eu vejo muita influência de música regional no indie, por exemplo, que era um movimento muito mais influenciado por escolas musicais inglesas e norte americanas. Talvez isso ajude um pouco a tirar o forró da caixinha do folclore, assim espero!
13. A mistura de estilos musicais no seu álbum pode gerar críticas dos puristas. Como você responde a esses possíveis críticos?
Acho que aprendi a não ligar muito pra isso, já que é uma constante desde que comecei a tocar música regional.
14. Rafael, você está nos palcos há 19 anos. Qual foi o momento mais memorável de sua carreira até agora?
Acho que são vários, cada um de um jeito, cada um com sua particularidade. Já toquei pra 50mil pessoas no Forró Caju, em Aracaju, com direito a whats app do Alceu Valença elogiando o show no dia seguinte; já toquei em em reality show na Globo com milhões de pessoas assistindo e o Geraldo Azevedo e o Tato Cruz elogiando nossa performance; já toquei pra 150 pessoas em São Paulo na Vila Madalena com o Arismar do Espírito Santo dando canja; e, sinceramente não dá pra escolher qual desses momentos me emociona mais.
15. Como fundador da Banda Zaíra, quais foram os desafios mais significativos que você enfrentou ao longo dos anos?
A maior dificuldade, pra mim, no âmbito de como as pessoas consomem a música regional, é que ela é sempre enxergada como algo folclórico, algo “exótico”, como eu já disse há pouco. Sabe, tipo… “Oscar de melhor filme estrangeiro”? Estrangeiro pra quem? Pros EUA no caso, já que o Oscar é uma premiação que privilegia a produção estadunidense. O que me parece é que a música regional brasileira é estrangeira dentro do seu próprio território.
16. Atualmente, você também faz parte do Fuá do Guegué. Como você equilibra esses diferentes projetos musicais?
É muito legal ter dois projetos autorais ao mesmo tempo! O Fuá do Guegué é uma banda muito maravilhosa e às vezes nem acredito que tô ali tocando junto, fazendo parte desse coletivo. Ter o meu trabalho solo e ao mesmo tempo fazer parte do Fuá potencializa e acelera muito o aprendizado, pois vivencio dois processos de criação diferentes. Esses processos vão desde a logística de um show, ensaios, redes sociais, processo de composição, até a gravação e lançamento de um disco. Então é só alegria e muito aprendizado!