https://abacus-market-onion.top Entrevista: Marília Passos, escritora - Marramaque

Entrevista: Marília Passos, escritora

1. Marília, você pode nos contar como surgiu a ideia de ambientar um romance em uma vila caiçara? O que a vila de Picinguaba representa para você?
Considero Picinguaba minha casa. Meu avô chegou na vila na década de 70, nem havia a Rio-Santos. Parte da minha infância e adolescência foi lá, pescando, andando na floresta, remando canoa – participando de todos os aspectos da cultura daquele povoado.
Eu sempre tive vontade de retratar a singularidade da vila e sua formação. Inicialmente, faria um livro histórico-cultural, e estou há anos pesquisando informações e entrevistando os antigos da vila – muitos já até se foram. Mas, como ficcionista, percebi que teria mais prazer e liberdade ao escrever uma ficção baseada em dados históricos.

2. Em Do mar, o sonho, você mistura elementos históricos com realismo fantástico. Como foi o processo de equilibrar essas influências para criar uma narrativa envolvente e verossímil?
A minha vivência em Picinguaba sempre equilibrou o realismo fantástico com a realidade diária. Faz parte da cultura deles falar de figuras míticas, de poderes sobrenaturais. A oralidade de muitos flertam com o animismo, então não conseguiria escrever uma história que não trouxesse essa troca entre o onírico e o concreto.

3. O personagem Deco enfrenta uma série de desafios e mudanças. Como ele reflete as características e tradições das comunidades caiçaras dos anos 1940?
No começo do livro, Deco simboliza o tempo em que aquela região ficou completamente isolada do país. As vilas caiçaras viviam de subsistência, crianças mal tinham o que vestir, não tinham documentos, começavam a trabalhar na roça ou na pesca muito cedo. Deco nos mostra a dificuldade de sobreviver em um ambiente de perspectivas reduzidas, mas também traz consigo a força do sonho, do desejo de construir uma história com um enredo diferente do esperado. Ele quer ir além desse destino, quer superar os limites impostos pelo isolamento em que viviam. 

4. Você mencionou que o livro é também uma homenagem à memória de seu pai. Como essa perda influenciou a escrita e o tom da obra?

Meu pai sempre conviveu com o mítico, com a espiritualidade, com forças que se manifestam além da realidade. Fora isso, meu pai, por natureza distante, acompanhou parte do livro, esteve próximo enquanto eu escrevia, queria saber como estava sendo desenvolvida a história. Ele faleceu alguns meses antes de eu terminar o livro. Acho que foi só aí que percebi as intersecções entre o livro e meu pai – e foi muito bonito perceber esse encontro. Principalmente porque eles se dão onde o afeto se faz presente. 

5. Nos seus primeiros romances, a dor era um elemento transformador. Em Do mar, o sonho, o afeto parece ser o centro. Como você percebe essa mudança de perspectiva em sua trajetória como escritora?
Acho que é mais sobre minha trajetória pessoal do que como escritora. Mais nova, eu buscava o trágico nos livros que lia, nos filmes, em pequenas histórias que escrevia. Consumia matérias e notícias que reforçavam a ideia de um mundo cruel. Hoje, procuro um outro olhar. Procuro histórias que mostram as boas ações, a grandiosidade da vida, a força de um gesto de gentileza. Um sorriso. A empatia. A transformação que é possível acontecer no mundo quando nos mobilizamos para isso. 

6. Há uma forte ligação com a natureza e a magia que permeiam a vida dos personagens. Qual é o papel do ambiente natural de Picinguaba na formação da história?
A natureza é muito exuberante naquela região. É uma força em si! Não tem como dissociar a natureza da cultura caiçara, de seus desejos, daquilo que os move. Tentei trazer isso para o livro. A ideia de que natureza e os personagens do livro são um corpo único. 

7. Sabemos que você tem uma formação diversificada, passando pelo teatro e pela dança antes de se dedicar à literatura. Como essa experiência artística contribuiu para a criação dos personagens e da narrativa?
Eu consigo pontuar de forma direta alguns aspectos, como ao desenvolver diálogos, volto a ser atriz, representando papéis, falando alto, pensando na entonação. E a dança me ajuda a dar substância para o corpo dos personagens, demonstrando os sentimentos, desejos e expectativas que os atravessam. Porém, tenho certeza de que essa bagagem contribui para muito além desses pontos. 

8. Você disse que ouviu relatos da população local para compor a história. Qual foi a reação deles ao saberem que suas histórias inspiraram um romance?
Muitos dos entrevistados são contadores de histórias, verdadeiros artistas da oralidade. Na minha forma de entender, essa ideia de virar um livro só está começando a se concretizar agora para eles, com o livro impresso em suas mãos. Antes disso, em nossos encontros, eles só seguiram fazendo o que fazem todo fim de tarde quando se encontram na praia: estão contando casos, trocando histórias e se relacionando com os outros através da oralidade. 

9. Selvagem foi finalista do Prêmio Jabuti, assim como Do mar, o sonho. Quais foram os aprendizados dessa trajetória literária e como eles impactaram sua nova obra?
Eu não estava esperando a nomeação, tinha me esquecido até que a editora havia inscrito o “Selvagem”, então foi uma alegria inesperada e uma grande conquista, pois me abriu muitas portas. A partir disso, fiquei mais atenta a premiações como uma forma de divulgar meus livros e conseguir levá-los à mais leitores. 

10. O lançamento do livro também tem uma contrapartida social, com exemplares sendo doados a bibliotecas e instituições culturais. O que a levou a tomar essa decisão e qual é a importância desse acesso para a literatura brasileira?
Quando enviei o projeto ao ProAC, escolhi essa contrapartida pois acredito que disponibilizando os livros à lugares com menos acesso, encurtamos os caminhos para formar leitores. “Do mar, o sonho” foi distribuído pela comunidade de Picinguaba e junto, fiz uma oficina de escrita com as crianças da escola da vila. A oficina foi sobre literatura, e também sobre ancestralidade e resgate de identidade. Foi muito legal! 

11. Para quem ainda não conhece a cultura caiçara, que elementos você espera que sejam descobertos e apreciados através de Do mar, o sonho?

A relação intrínseca com a natureza, principalmente com o mar. Como a cultura dessas vilas está ligada à relação direta com àquilo que produzem, com o dia a dia sendo vivido através da busca pela sobrevivência, entrando por magia e uma forma onírica de interpretar o mundo.  

12. Quais são suas expectativas para os lançamentos em São Paulo, Campinas e Rio de Janeiro?
A melhores! Rsrsrs. Gosto de organizar o lançamento dos meus livros como um encontro de amigos que me dão a honra de celebrar o nascimento de mais um livro. Algo parecido como quando recebemos visita na maternidade. Meus lançamentos costumam ser longos e se estendem em conversas e encontros com amigos, dos quais muitos estou há muito sem ver. Vivencio os lançamentos como uma festa de pessoas queridas.