Entrevista: Márcia Fráguas, historiadora

Entrevista: Márcia Fráguas, historiadora
Retratos da escritora, Márcia Fráguas para o projeto Retratos Literários.

1.O que a motivou a explorar o período de exílio de Caetano Veloso como tema central para este livro?

No final da graduação em História na USP, percebi que não havia nenhum trabalho de fôlego sobre a obra do exílio de Caetano até aquele momento. Ao mesmo tempo, diversos acontecimentos políticos no Brasil, de 2013 a 2017, período em que eu cursava História, insistiam em replicar ecos dos anos de chumbo, numa espécie de fantasmagoria atualizada. Achei que seria interessante olhar para esse passado recente, de 50 anos atrás, com um olho no presente.

2. Como foi o processo de adaptação de sua dissertação de mestrado para uma obra destinada ao público em geral?

A edição de Chris Fuscaldo, que foi suplente na minha banca de defesa de mestrado, e agora é minha editora, foi muito competente em manter a agilidade do texto sem a formatação mais acadêmica, cheia de referências e notas de rodapé.  Acho que a linguagem acessível e o tema do livro são interessantes para um público mais amplo, sem deixar de ser uma fonte relevante para pesquisadores. Uma das dificuldades da escrita acadêmica é conseguir projeção para além dos muros da universidade, e o trabalho da Garota FM Books, nesse sentido, tem sido fundamental, adaptando trabalhos diversos e importantes oriundos da academia para um público mais amplo e interessado na história de nossa música popular.

3. O que a análise dos álbuns lançados por Caetano durante o exílio revela sobre a construção de sua “poética do exílio”?

A obra de Caetano Veloso do período analisado, a saber, 1969-1972, descreve um arco, que vai da prisão ao exílio e consequente retorno ao país no início de 1972. O exílio é uma condição paradoxal, de inadequação espaço-temporal e linguística permanente. Ao mesmo tempo que se tem saudades do país de origem, o exilado não se encontra mais lá, e sua situação presente é de descompasso em relação a língua e sua nova realidade. Caetano Veloso canta em “Língua”, do álbum Velô (1984) que sua pátria é a língua portuguesa. Estar em condições que te obrigam a compor em outro idioma é também uma forma de exílio, talvez uma das mais dolorosas, já que aprendemos a sentir, compreender e interpretar o mundo a partir de nossa língua materna.

4. Quais foram os desafios mais significativos que você encontrou ao investigar a produção cultural durante o período da ditadura militar?

O desafio mais significativo foi pesquisar em situação de pandemia e durante o governo vigente naquele período. Havia uma sensação de medo em revisitar criticamente esse período, e com o isolamento imposto pela pandemia o acesso a arquivos e bibliotecas ficou prejudicado. A pesquisa foi feita toda a partir de inúmeras fontes que eu já tinha coletado e aquilo que a internet tornava possível acessar.

5. Como você enxerga o impacto do exílio forçado de artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil no movimento tropicalista?

Ao chegar em Lisboa, Caetano Veloso declarou a Raul Solnado no programa de TV Zip-zip que o Tropicalismo havia acabado, já que ele e Gil se encontravam exilados. Ele complementa que o movimento havia frutificado, pela influência que eles tinham exercido em outros artistas. O fato é que coube a Gal Costa seguir levando a bandeira das experimentações estéticas iniciadas por eles, agora com outros parceiros por aqui: Jards Macalé, Waly Salomão, Duda Machado, José Carlos Capinan, entre outros, experimentando o experimental, como diria Hélio Oiticica. Essa é, inclusive, a minha pesquisa atual no doutorado em Teoria da Literatura na Uerj.

6. O livro reflete sobre as fraturas no campo da arte e cultura no Brasil do final dos anos 60. Pode nos falar mais sobre como essas fraturas se manifestaram e impactaram a música brasileira?

Havia naquele momento um ambiente de convergência e diálogo entre as diversas artes no Brasil: o cinema de Glauber Rocha, o Teatro Oficina de José Celso  Martinez Corrêa, o trabalho visual de Hélio Oiticica e Rogério Duarte, os escritos de Torquato Neto. O AI-5 incide sobre essa geração como um trauma porque promove encarceramentos, exílios, dispersões. Muita gente foi presa, torturada, tantos outros se recolhem, adoeceram psiquicamente. É nesse sentido que falamos em fratura. O AI-5 promoveu essa dispersão violenta.

7. Entre os três álbuns de Caetano abordados no livro, Caetano Veloso (1969), Caetano Veloso (1971) e Transa (1972), qual você acredita que mais simboliza o período do exílio?

É difícil responder isso, porque como mencionado, os álbuns do período descrevem um arco. Talvez o disco de 1971, que tem “London, London”, tematize mais as dores da experiência do exílio. Caetano Veloso mesmo se refere a dificuldade de ouvir esse disco hoje, por se lembrar de quão deprimido estava na época.

8. Qual foi a importância de Londres no processo criativo de Caetano Veloso durante o exílio?

Caetano Veloso costuma dizer que se não tivesse sido exilado, talvez jamais tocasse violão em seus discos, já que isso não lhe era permitido no Brasil, por acharem que sua técnica era insuficiente. Foi em Londres que ele incorporou seu modo de tocar violão às gravações dos discos. O ambiente da Londres do final dos anos 60, a Swinging London dos Beatles, Jimi Hendrix e Rolling Stones, sem dúvida tiveram um papel importante nos discos que Caetano compôs e gravou por lá e por conseguinte, em sua carreira musical.

9. Como você acredita que a obra de Caetano Veloso ressoou com o público brasileiro naquela época, apesar das limitações impostas pela censura e pelo regime?

O grande público não sabia que Caetano Veloso era exilado político. Achava-se que ele e Gil estavam dando um tempo em Londres. Não era do interesse da ditadura que isso fosse ventilado, para que isso não arranhasse a “produção de normalidade” feita pelo regime. Quando Caetano consegue autorização para visitar o país em fevereiro de 1971, para as bodas de casamento de seus pais, ele foi sequestrado por algumas horas pelos militares, ao chegar no aeroporto, que impuseram condições, dentre elas, a aparição de Caetano em programas de TV, para dar a impressão de que “estava tudo bem”. Tenho para mim que um dos motivos de não haver trabalhos de grande fôlego sobre o assunto se deve ao fato de que Caetano Veloso só falou abertamente sobre seu exílio no início dos anos 90, mais especificamente, na turnê do Circuladô Vivo, ou seja, só depois que o Brasil voltou a votar para presidente. E sabemos que a construção de uma memória histórica crítica sobre a ditadura militar brasileira é muito recente. Só no governo Dilma Rousseff tivemos uma Comissão da Verdade para apurar os crimes da ditadura e mesmo assim sem punição dos culpados.

10. Qual foi a contribuição de eventos como o “Lamber a Língua” para a sua pesquisa e sua análise sobre a obra de Caetano?

O Lamber a Língua foi uma iniciativa posterior a pesquisa. O prof. Dr. Leonardo Davino de Oliveira, da Uerj, foi um dos arguidores da minha banca de defesa de mestrado. Posteriormente, comecei a frequentar seu grupo de pesquisa na Universidade do Estado do Rio Janeiro e conheci Enzo Banzo, também caetanólogo e pesquisador de música popular, além de músico na banda Porcas Borboletas. Resolvemos os três criar um evento na Uerj para celebrar os 80 anos de Caetano com apresentações de diversos pesquisadores, que depois foram reunidas no livro “Lamber a Língua: Caetano 80”, da Folhas de Relva ed., porque achamos que a academia no geral tinha se manifestado muito pouco sobre uma efeméride tão importante, afinal, Caetano além de compositor é também um pensador da cultura brasileira. No ano seguinte, eu ingressei no doutorado sob orientação do prof. Davino, e a iniciativa do Lamber a Língua se tornou um evento anual, com temas diversificados ligados ao universo da canção popular. O evento passou a fazer parte do LEV-Uerj ( Laboratório de Estudos de Poesia e Vocoperformance), que também promove audições comentadas de álbuns clássicos da MPB por estudiosos da área, fazendo uma ponte com pesquisadores de outras instituições espalhados pelo país.

11. Como o trabalho editorial da Garota FM Books contribuiu para o desenvolvimento do seu livro e como você vê o papel da editora no resgate e análise da história musical do Brasil?

Já foi respondido na questão 2

12. Na sua opinião, qual o impacto cultural e histórico do retorno de Caetano ao Brasil em 1972, após anos de exílio?

Caetano Veloso volta com mais desenvoltura como performer, depois dos anos vividos em Londres. Foi lá também que ele se interessou formalmente pelo papel e pelo vigor do Carnaval da Bahia. Ele gravou em Londres o EP O Carnaval de Caetano, em novembro de 1971, com a mesma banda do Transa, e que mais tarde vai dar origem ao álbum Muitos Carnavais (1977) e ao olhar ponta de lança do compositor para essa grande festa popular e seus trios elétricos. No exílio, Caetano assimilou também influências e modos de compor que marcariam toda a sua carreira futura, de trabalhos experimentais como Araçá Azul (1973), com alguma ideias formais já presentes em seu disco do exílio de 1971, ao Qualquer Coisa (1975), que brinca criativamente com os Beatles.

13. Quais são as principais questões que você espera levantar e discutir com o público que ler o seu livro?

Espero que o livro ilumine questões de ontem que insistem, ainda, em se fazer presentes na sociedade brasileira, sobretudo o risco do autoritarismo e da abolição do Estado Democrático de Direito e das liberdades civis. Como o Brasil não acertou as contas com seu passado ditatorial, vira e mexe, os fantasmas daquela época aparecem mitificados, aqui e ali, na política e na sociedade brasileiras. Espero que meu livro, assim como o filme de Walter Salles, Ainda Estou Aqui, adaptado da obra de Marcelo Rubens Paiva, reforcem que precisamos conhecer sobre a história recente do país, para que esses abusos e violências de Estado não se repitam. É preciso construir uma memória sobre eles. Não esquecer para não repetir.

14. Quais outros aspectos do movimento tropicalista e da obra de Caetano Veloso você gostaria de explorar em futuras pesquisas?

Respondido na questão 5.

15. Por fim, quais expectativas você tem para o lançamento do livro e para o diálogo com os leitores no evento?

As melhores possíveis. Acho que o livro sai num momento político e cultural quentes, coincide com o Ainda estou aqui nos cinemas, que reavivou o debate em torno da memória do deputado Rubens Paiva, sequestrado e desaparecido pela ditadura militar, e sobre a discussão de que é precisar punir os envolvidos na tentativa de golpe mais recente que sofremos, logo após as últimas eleições presidenciais. Eu aqui engrosso o coro: sem anistia!

marramaqueadmin