https://abacus-market-onion.top Entrevista: Lotzse, cantora e compositora - Marramaque

Entrevista: Lotzse, cantora e compositora

1. Lotzse, você trabalhou em galerias de arte antes de lançar seu primeiro álbum. Como esse ambiente influenciou sua decisão de se dedicar à música? 

De forma completamente sutil, mas determinante. Inicialmente eu entendia o meu trabalho na galeria apenas como uma forma de me sustentar e, futuramente, financiar o álbum. De alguma forma, eu consegui começar a produzir o álbum enquanto ainda trabalhava, o que foi bom para o processo, mas tornou ainda mais difícil a decisão. Foi apenas quando os diretores da última galeria que trabalhei, que sempre admirei imensamente – artística e intelectualmente falando –, escutaram as minhas músicas e me disseram que não imaginavam que o que eu estava fazendo era daquela magnitude, que eu precisava ir atrás desse sonho e uma fatídica frase “Você é artista, não galerista. Você precisa pensar na sua obra agora.” ficou na minha cabeça. Foi o empurrão que eu precisava para dar esse salto e me dedicar integralmente à música. 

2. Em que momento você percebeu que a música seria o caminho para expressar suas próprias reflexões e sentimentos? 

Não consigo lembrar o momento exato, acho que desde o dia que eu nasci eu sabia que seria cantora. O mais difícil foi entender que o que eu escrevia era bom o suficiente para isso. 

3. O álbum começou a ser produzido em 2020 e passou por um longo processo até chegar ao lançamento. Como foi essa jornada, e por que você escolheu lançar excelentes exceções agora? 

Foi uma longa jornada que precisei percorrer para me preparar objetiva e subjetivamente para isso. Começar em plena pandemia já era um desafio e tanto, mas, para além disso, eu ainda trabalhava das 10h às 19h, incluindo sábados. Eu encontrava o Fred e César pós expediente para levantarmos todos os arranjos e compor, tirava férias ou acumulava folgas para poder gravar. Tiveram momentos que precisamos adiar datas por conta do isolamento social ou por outras questões pessoais que passei nesse meio tempo. Eu nomearia essa parte como a objetiva. Depois que saí da galeria, precisei de 1 ano para mergulhar no meu processo interno artístico – me ver como artista não foi uma tarefa fácil, principalmente considerando ter passado tantos anos trabalhando com isso, do outro lado da moeda –, e desenvolver toda a identidade visual e a comunicação que eu acredito que faz jus à quem eu sou. Essa foi a parte subjetiva. Desde o começo intuí que saberia o momento certo de lançar, sem acelerar o processo. E escolhi acreditar que o momento certo se apresentaria pra mim na hora certa. Essa hora é agora. 

4. Você mencionou que a intuição guiou o processo de produção do disco. Pode nos contar sobre alguma decisão importante que foi tomada de forma intuitiva durante a criação? 

Eu posso contar várias. Desde a decisão de chamar o Fábio para produzir, à escolha da quantidade de faixas que teria, até a forma como eu tenho comunicado tudo. Acho que a

maioria das decisões foram tomadas a partir da minha intuição e do que eu acredito que faz sentido para mim. 

5. O que significa para você ter o César Lacerda como diretor artístico do projeto? De que maneira ele contribuiu para o álbum? 

O César foi, sem dúvidas, uma peça chave nessa construção. Quando nos encontramos pela primeira vez, eu já tinha muito claro que para mim o importante era ter um tema, um conceito, eu não queria um compilado de músicas que não conversassem entre si. Quando trouxe o que escrevia, César comentou que percebeu um tema recorrente: as relações entre mulheres em seus diversos níveis e vínculos. E foi aí que percebi que esse era o meu assunto, sempre esteve lá sem eu mesma perceber. Além disso, seus inputs e impressões sempre foram muito delicados e essenciais ao longo do processo. Ademais, também selamos mais ainda nossa parceria com a chegada do seu Selo, Aurita Records, do qual faço parte. Tenho César não só como diretor artístico, mas também um amigo e parceiro que sinto que posso contar. 

6. Em várias faixas, você incluiu falas de textos que escreveu. Como essas passagens faladas se integram ao álbum e o que elas acrescentam à narrativa das canções? 

Os textos são os originais de onde as músicas surgiram, muitas partes foram cortadas porque não caberiam, ou lírica ou melodicamente. Mas haviam algumas coisas que ainda achava importantes serem ditas, então optei por incluir em falas para enriquecer a narrativa que construí ao longo do álbum. 

7. A imagem do Ouroboros – a serpente que engole a si mesma para renascer – aparece como referência na estrutura do álbum. Como você entende esse símbolo em relação às suas músicas e à sua trajetória? 

O ouroboros é um símbolo que me acompanha há muitos anos. Aos 20 anos sofri um acidente no qual fui atropelada. E foi um renascimento para mim. Eu estava em um momento muito confuso e, para me recuperar, foi necessário ficar 1 mês de cama e mais alguns sem pisar o pé no chão. Esse tempo parada foi essencial para o meu desenvolvimento e entendimento de diversas coisas, também foi um momento de virada na minha escrita e de elaboração do que me aconteceria dali para a frente. O álbum abre com uma busca “procurando a resposta em pontos de luz no escuro” e ao longo do disco vou encontrando respostas, mas também novas perguntas e outras percepções. O arranjo de “maria, maria” conversa muito com o de “mvxs”, que é a primeira. Trazendo essa intenção de voltar a investigar dúvidas, mas não do mesmo lugar, pois agora já sou uma nova pessoa. Assim, ao meu ver, o álbum conta uma narrativa não exatamente circular, mas em espiral. Voltando a um ponto semelhante, mas sempre evoluindo.

8. A música “marémobilia” foi inspirada em uma instalação de Nuno Ramos. Qual foi a importância das artes plásticas como fonte de inspiração para esse álbum? 

Foi providencial, mesmo que eu não tenha percebido desde o início. No álbum eu faço menção a alguns trabalhos que convivi ao longo dos anos e me inspiraram para escrever. As artes plásticas entraram na minha vida de forma branda e seguirei honrando essa história para sempre no meu trabalho. 

9. Você se inspirou no livro Garota, Mulher, Outras, de Bernardine Evaristo, para a faixa “garota, mulher, outras”. De que forma o livro ressoou com a sua própria experiência e como isso se traduziu na música? 

Não sei se me inspirei exatamente no conteúdo do livro em si, afinal ele retrata realidades bem distantes da minha. Mas a verdade é que eu estava lendo esse livro quando escrevi a música, durante uma viagem na Chapada Diamantina. E, então, percebi a semelhança nas palavras e achei que seria uma menção honrosa dar o mesmo nome à faixa. 

10. excelentes exceções explora temas como sororidade, amor não-romântico e autoestima. Por que esses tópicos foram centrais para você nesse projeto? 

Esses tópicos fazem parte da forma como eu vejo o mundo desde sempre, mesmo que de forma intuitiva. Na vida, vivi algumas situações nas quais precisei colocar à prova que sororidade – e agir com amor perante algo que não necessariamente você ama – é uma forma de ser e estar no mundo. A intenção desse álbum é contar histórias que ainda não foram contadas, pelo menos não à mim. E, quem sabe, servir de inspiração para outras histórias. 

11. Você explora a relação entre gerações em “mvxs”, uma canção dedicada ao seu avô. Qual a importância dessa conexão para você? 

O meu avô foi uma figura paterna primordial. Meu avô sempre foi muito trabalhador, venho de uma família grande e fui a neta mais nova por muito tempo. Como o mais velho e a mais nova da família, nós tínhamos muitas diferenças e, mesmo assim, ele sempre esteve presente em todas as etapas da minha vida. Meu avô me ensinou grandes lições que levarei comigo para o resto da vida e espero poder passar para a próxima geração. 

12. Em “brilha mais”, você fala sobre empoderamento feminino a partir de uma experiência de uma amiga. Como você enxerga o papel da amizade feminina na construção de autoestima e apoio? 

Substancial, imprescindível e fundamental. Minhas amigas são o lastro que me permite pensar, experimentar, errar e elaborar a vida no seu mais puro sentido. Sem essa construção contínua e diária eu, definitivamente, não seria nem um quinto de quem sou hoje. Eu arrisco dizer que esse álbum é uma carta-aberta em homenagem a elas e tudo o que edificamos juntas.

13. “19barra20” reflete sobre o retorno à vida social pós-pandemia. Como essa experiência pessoal influenciou sua visão sobre relacionamentos e conexões? 

Nessa música eu falo sobre o conforto que é saber que, independente do que acontecer, podemos voltar às nossas amizades como voltar para casa. 

14. Por que você escolheu finalizar o álbum com “maria, maria” de Milton Nascimento? Qual é o significado dessa canção no contexto do seu álbum? 

Desde o início, minha intenção para esse disco eram 10 faixas, com uma regravação. Quando entendemos o tema, ficou a questão de qual seria a música que caberia dentro deste conceito. Não tive dúvidas. Maria, Maria é uma música que sempre quis cantar para minha avó, uma mulher forte e muito corajosa. Consciente de que a música virou um ícone feminista na voz de Elis Regina, optei por um arranjo mais denso, sugerindo uma nova forma de pensar o feminismo. Talvez menos alegre, mas com um tom mais firme e determinado. Também remanejei a ordem dos versos, pois não poderia pensar uma frase melhor para finalizar esse álbum do que “uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do planeta” enfatizando o mote do disco. 

15. Com o lançamento do álbum, você agora inicia uma nova fase em sua carreira musical. Quais são seus próximos planos e o que espera dessa trajetória? 

Esse disco abriu um espaço dentro de mim de muita vida e inspiração. Confesso que estou começando a pensar no meu segundo álbum, tenho o conceito e já comecei a produzir uma coisa ou outra. Espero que excelentes exceções abra portas que me permita seguir mostrando que sei e posso fazer melhor e melhor. 

16. Você já mencionou que sente como se estivesse apenas no começo de uma jornada. Quais são os principais desafios e emoções para você ao dar esse “salto” na música? 

Os desafios são diversos, mas diria que o maior deles é a sensação de estar frente a um abismo escuro e profundo, no qual eu não vejo o outro lado. Mas também já entendi que ser artista é ter essa vivência no mundo, e eu não viveria de outra forma.