Entrevista: Bell Puã, escritora

1. Bell, você pode nos contar um pouco sobre o que a motivou a escrever “Nossa História do Brasil: Pindorama em Poesia”?
“O que motivou foi o incômodo com as lacunas sobre a história que é passada nas escolas, que podemos constatar como um apagamento e invisibilidade da história da resistência negra e indígena. Esse incômodo foi o gancho principal para escrever e lançar o livro”.
2. Quais são os principais temas abordados na sua obra, e como eles se relacionam com a história dos povos negro e indígena no Brasil?
“Abordo uma reescrita da história do Brasil a partir do século 16, trazendo uma diversidade de temas relacionados à forma como a gente aprende na escola, sobretudo a partir dessa crítica ao colonialismo e a forma colonial como a gente aprende a história do Brasil, além da forma que aprendemos a pensar o mundo. O livro traz temas como estrutura racista, genocído ao povo indígena, apagamento que o colonialismo faz não só da história dos povos oprimidos, como do resto do mundo. A gente aprende toda a história da Europa, e não aprendemos nada da China, da Índia, com questões semelhantes às nossas porque são países que também foram colonizados e invadidos pelos europeus”.
3. A obra é dividida em quatro capítulos que cobrem diferentes séculos da história do Brasil. Por que você escolheu essa estrutura específica?
“Foi uma escolha pedagógica para deixar didática essa passagem do tempo no Brasil, trazendo títulos que marcam esses períodos: ‘Invasão europeia – século XVI ao XVII’; ‘Um país inteiro cabendo dentro da Casa Grande – século XVIII ao XIX’; ‘O candor pelo ser Colonizado – século XX’; ‘Nada está pleno – século XXI”.
4. Você menciona que os poemas foram pensados como um “eco coletivo”. O que quer dizer com isso e qual o reflexo na forma como os poemas devem ser lidos?
“É coletivo porque essa história do Brasil é mostrada na 1ª pessoa do plural. Ela é nossa, é das pessoas negras e indígenas e das pessoas que vieram de famílias subalternas, sendo totalmente desprezadas pelo estado brasileiro, seja por conta dos vestígios da escravidão e de todo o descaso com o Nordeste. Com isso refletido nos poemas do livro, acredito que são críticos e incisivos. Acredito que esse eco coletivo reflete numa forma nada leve de trazer questões, até porque são sérias e fomos ocultados de saber dela por conta dessa situação de história oficial”.
5. Como sua formação em História influenciou sua escrita e a pesquisa que você realizou para este livro?
“Influenciou completamente porque foi estudando História que pude perceber as lacunas da história oficial. Quando tive acesso às autoras e autores do Brasil, Chile, México, Argentina e Índia, foi uma expansão que a historiografia me deu, para poder pensar o Brasil e o mundo, além de me inspirar a escrever um livro onde o protagonismo é das pessoas negras e indígenas, da nossa história”.
6. Você é uma referência no slam e em poesia falada. Como essa experiência influencia sua escrita e a forma como você apresenta seu trabalho?
“Essa experiência no Slam das Minas PE e da poesia falada tem uma influência primordial na minha vida, na minha escrita, que é a comunicação. Existe o cuidado de comunicar bem, para além de escrever bonito, para que o que estou falando seja entendido e não seja uma sublimação tão profunda, que ninguém acesse, pois isso não me interessa. Acredito que a experiência me atentou para essa preocupação do comunicar e me inspirou para ser uma pessoa que comunica bem, sendo algo além de escrever bonito”.
7. Quais são suas referências literárias e como elas moldaram sua voz poética? Você poderia compartilhar como Conceição Evaristo e outras autoras influenciaram sua obra?
“São muitas referências negras e indígenas, como Conceição Evaristo, Elisa Lucinda, Carolina de Jesus, Marilene Felinto, as minhas companheiras do Slam das Minas PE, entre elas Patrícia Naia e Amanda Timóteo, além de Luiz Ribeiro. Todas essas pessoas são grandiosas para mim e para a feitura dessa obra. Sobre Conceição Evaristo, especificamente, participei de uma mesa com ela, possibilitando essa troca de perto. Ela é uma referência como pessoa e como literária, e é uma querida que traz essa perspectiva da escrevivência para mulher negra”.
8. Como você enxerga a relação entre a poesia e a música em seu trabalho? Você compõe canções também?
“Ela acabou sendo muito fluida e dinâmica. O slam e a poesia falada são do movimento hip hop, e o rap, que é o que eu canto, vem desse mesmo guarda-chuva. Também toco violão, estudei música ainda criança, então tenho essa relação há muito anos. E componho minhas canções, todas as que lancei são autorais”.
9. Em seu livro, você questiona a imagem que representa o Brasil atualmente. Como você vê essa representação e sua evolução ao longo dos anos?
“Veja uma representação colonizada, de um Brasil que quer tanto ser a Europa e que tem a sua industrialização atrasada como os demais países colonizados, sobretudo os da América do Sul, sendo uma eterna corrida para tentar ter o progresso europeu a partir do que é vendido pelo imperialismo. Não se preocupa com a devastação da natureza, com as vidas humanas, mas se preocupa mais com a propriedade. Vejo um Brasil à sombra do colonialismo, à sombra dos homens brancos, e sabemos que o Brasil é muito mais que isso”.
10. Você menciona que o Brasil foi o país que mais importou escravizados no século XVI. Como isso impacta a realidade atual das pessoas negras e pardas no Brasil, segundo sua perspectiva?
“São dados impressionantes. Pernambuco, o meu estado, recebeu mais escravizados do que os Estados Unidos inteiro. Quem fala sobre isso é Marcus Carvalho, professor e doutor da Universidade Federal de Pernambuco, onde estudei. É um impacto porque fez com que a população do Brasil fosse negra, e mesmo assim subalterna. A maioria das pessoas negras e pardas vive em estado de vulnerabilidade no Brasil. Se pegar a população dos Estados Unidos, não chega a 20% de pessoas negras e mesmo assim tem um espaço maior na mídia e na própria política. Então, é um impacto surreal, absurdo. É difícil reverter porque esse pensamento de pôr-se de acordo com as questões raciais, dizendo que é todo mundo misturado, que é todo mundo igual, que não tem racismo no Brasil, acaba por invisibilizar esse debate de quanto a gente recebeu escravizados no Brasil. E de como o racismo é tão grande que não conseguimos ter uma forte consciência racial em conjunto, mesmo sendo a maioria da população”.
11. Você participou da curadoria do 1º Festival Literário das Periferias. Como foi essa experiência e o que você espera que o festival represente para a literatura periférica?
“Fliperifa foi um festival especial, deu movimento e vida para a cidade do Recife. Divertido, dinâmico e acolhedor, com o protagonismo para as pessoas da periferia e da literatura, trazendo também o cuidado com a alimentação. Assim, as pessoas se sentem amparadas de conhecimento e de barriga cheia. A Fliperifa é algo bem pensado por Palas Camila, produtora cultural pernambucana e idealizadora do festival. Que ela possa continuar botando para frente, até porque é de extrema importância mostrar que a literatura é universal, e não só do centro, de homens brancos”.
12. O que você espera que os leitores levem consigo ao ler “Nossa História do Brasil: Pindorama em Poesia”?
Espero que as pessoas leitoras se incomodem também com as ausências da história oficial, e percebam que a história negra e indígena não foi falada porque ela não existe, pois sempre existiu. Mas houve uma escolha, e o problema foi trazer os feitos dos europeus, da classe dominante e da branquitude. Então, quero que as pessoas levem esse incômodo da história do Brasil, onde o nosso povo é apagado, e com isso a nossa história merece ser espalhada de forma mais democrática”.
13. Após o lançamento deste livro, quais são seus próximos projetos? Você tem novos temas que gostaria de explorar?
“Revelo os dois próximos projetos na literatura. Um é o livro infantil ilustrado por Horácio Moreira, com a obra voltada para a questão do mangue. O título é ‘Não há nada como o mangue’. O manguezal foi objeto de pesquisa na época que fiz o mestrado, sendo uma especialista em história ambiental, sobretudo do mangue. Esse livro infantil trará a importância do manguezal para as nossas vidas, a partir de uma história divertida para o público infantil. Já o outro livro é ‘A mente que sabe’. A obra é de poesia, para o público adulto, com Clara Moreira assinando as ilustrações. O livro trata do percurso de uma mulher após uma relação abusiva, então é algo mais relacionado à experiência de mulher, de relacionamento e de autoconhecimento”.
14. Como você vê o papel da poesia e da literatura na construção da identidade e da memória coletiva do Brasil?
“A literatura e a poesia têm levado a memória coletiva do Brasil nas costas. É só a gente ver que uma das obras hoje mais importantes é “Um defeito de cor”, romance de Ana Maria Gonçalves. Ela reconstrói a história de Luísa Mahin, líder da Revolta dos Malês, numa obra diferente da história oficial, isso porque ela mostra com autoestima e grandeza os passos do povo negro no Brasil. É realmente um papel de retomada e de afronta mesmo à história oficial. E é isso que o meu livro também quer fazer”.