ÁGUA VIVA” CONSAGRA GAL COMO DIVA DEFINITIVA

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Quando registrou o álbum “Água Viva”, apenas 13 anos depois de sua tímida estreia num compacto com as composições dos colegas do grupo baiano, Caetano Veloso (“Sim, foi você”) e Gilberto Gil (“Eu vim da Bahia”), o soprano maleável e extenso de Gal Costa já tinha atravessado diversas fases. Do aconchego joãogilbertiano do LP inaugural, “Domingo”, dividido, em 1967, com o mesmo Caetano; aos uivos janisjoplianos tropicalistas de “Divino maravilhoso”, e ao quarteto Doces Bárbaros, onde sua doce emissão amoldou-se às de Caetano, Gil e Maria Bethânia, em 1976. De capa borbulhante, onde o sorriso da cantora parece submerso, “Água Viva” rima com diva. Ela já deixara para trás a jovem musa de rebeldes cabelos, do point alternativo na praia de Ipanema, cujas areias ganharam o apelido de Dunas de Gal. 

Era agora uma estrela glamurosa, soma das experiências anteriores, vinda de “uma remota batucada”, deslizando pelos “saborosos cambucás”, do samba exaltação “Olhos verdes” (Vicente Paiva), sucesso de 1950, por outra voz cintilante, a de Dalva de Oliveira (1917-1972), soberana do rádio.  Mais um retrofit do disco é “O bem do mar”, ausente do songbook “Gal Canta Caymmi”, de 1976, uma das mais belas canções praieiras da safra de 1954, de Dorival Caymmi.

Mas nada de nostalgia. “Água Viva” é essencialmente contemporâneo, cevado por um instrumental estelar, sob a direção de produção de Perinho Albuquerque. Alguns escalados: Wagner Tiso, Thomas Improta, Perna Fróes, Jamil Joanes, Luizão Maia, Paulinho Braga, Perinho Santana, Moacir Albuquerque, Bira da Silva, Toninho Horta e Sivuca. Repertório de autores no auge da criatividade, como a intensa Sueli Costa de “Vida de artista”, com Abel Silva. Milton Nascimento fornece dois petardos, o rock metafórico “Cadê” (com Ruy Guerra) e o embalo libertário de “Paula e Bebeto” (com Caetano): “Qualquer maneira de amor vale a pena/ qualquer maneira de amor valerá”. O onipresente Caetano assina três outras composições, “A mulher”, no campo da metafísica poética, mais a cortante “Mãe”, num valseio pop dramático: ‘Sou triste quase um bicho triste/ e brilhas mesmo assim/ eu canto, grito, corro, rio/ e nunca chego a ti”. E, em contraste, o frevo trieletrizado “Qual é baiana?” (com Moacyr Albuquerque) que carnavaliza, escudado na terminologia da época: “essa menina é só de brincadeira/ só dá bandeira”.

No outro polo, o da densidade harmônica, viceja a dolorida “Pois é”, de Tom Jobim e Chico Buarque, de 1970, numa revisita sucinta, de menos de dois minutos. Do mesmo Chico é o bolero lânguido “Folhetim”, da “Ópera do Malandro”, que Gal transformou num estrondoso sucesso. A face nordestina do trajeto brota “debaixo do barro do chão”, onde Gil prospecta “De onde vem o baião”. No final, um xote rock do herdeiro direto do rei do gênero, Gonzaguinha, “O gosto do amor”, é partilhado no vocal por ele e Gal: “Imagina quando eu chegar no céu/ aí mesmo é que eu vou gostar’. Do magnífico “Água Viva”, gostar é pouco.

Tárik de Souza