Seleta Erótica de Mário de Andrade

Seleta Erótica de Mário de Andrade

Eliane Robert Moraes
Ubu Editora



“As três f… na rede”

Poucos sabem que o livro Macunaíma teve uma passagem censurada que vigora até hoje. Acusado de imoralidade, foi o próprio Mário de Andrade que cortou a cena mais picante de sua rapsódia em que o herói e sua companheira Ci, “despertados pelo gozo”, dedicam-se a inventar novas “brincadeiras”. Publicada apenas na primeira edição do livro, a sequência suprimida é a parte da narrativa que melhor se ajusta à ideia de erotismo literário, já que, nela, o escritor se entrega por inteiro à tarefa de descrever posições lascivas sem buscar qualquer justificativa fora do próprio sexo.

É o que se comprova num desses parágrafos obscenos:

“Outras feitas mais raras e mais desejadas o herói jurava pela memória da mãi que não havia de ser perverso. Então Ci enrolando os braços e as pernas nas varandas da rede numa reviravolta ficava esfregando o chão. Macunaíma vinha por debaixo, enganchava os pés nos pés da companheira, as mãos nas mãos e se erguendo do chão com esforço, principiavam brincando assim. Dava uma angústia de proibição esse jeito de brincar. Carecia de um esforço tamanho nos músculos todos se sustentando, o corpo do herói sempre chamado sempre puxado pelo peso da Terra. E quando a felicidade estava para dar flor o herói não se vencia nunca, mandando juramento passear. Abria alargado os braços e as pernas, as varandas da rede afrouxavam e os companheiros sem apoio tombavam com baque seco no chão. Era milhor que Vei, a sol!”

O trecho em questão nasceu de uma sugestão de Manuel Bandeira que, ao ler a primeira versão da rapsódia, achou que Mário deveria ampliar os encontros lúbricos entre Macunaíma e Ci. Tendo acatado o conselho do amigo, o escritor acrescentou a descrição das “artes novas de brincar” à narrativa, embora mais tarde tenha expressado arrependimento por essa inclusão devido às inúmeras acusações de “ataque à moral e aos bons costumes”. Em carta escrita logo após o lançamento do volume, ele confidencia ao poeta que aquelas safadezas “ficaram engraçadas, não tem dúvida, porém já arrependo de descrever as três f… na rede”.

Seleta Erótica de Mário de Andrade

A obra de Mário de Andrade é atravessada por uma profunda inquietação em torno do sexo. Pulsante e permanente, essa inquietação se traduz tanto na exploração do domínio erótico, de notável amplitude, quanto na incessante busca formal que o tema lhe impõe sem descanso. Na tentativa de reconhecer a silhueta de Eros nas tantas faces que o próprio escritor se atribuiu, sua produção literária se vale dos mais diversos recursos formais para dar conta de uma dimensão que parece continuamente escapar. Daí que o sexo venha a ser alçado ao patamar das suas grandes interrogações, onde se oferece na obscura qualidade de incógnita.

Foi a partir dessas constatações que Eliane Robert Moraes concebeu a Seleta Erótica de Mário de Andrade, desdobrando-as em diversas perguntas pontuais, sem perder o foco na tópica da sexualidade. Conforme a pesquisa ganhou corpo, as questões foram se organizando até resultar nas oito partes que compõem a presente Seleta, a saber: “Artes de brincar”, “O corpo da cidade”, “Coisas de sarapantar”, “Presença da dona ausente”, “Imoralidades e desmoralidades”, “Prazeres indestinados”, “Brasileirismos, safadagens e porcarias” e “Confidências e confissões: alguma correspondência”.

Fruto de uma visitação intensiva aos escritos do autor, o trabalho de seleção buscou contemplar tanto a variedade de gêneros por ele praticada quanto as diversas fases de sua obra, sem negligenciar aspectos biográficos ou editorias. Embora o volume tenha privilegiado os títulos mais representativos em termos de erotismo, com particular atenção aos textos canônicos, considerou-se pertinente apresentar exemplos da “obra imatura”, ainda pouco conhecida, além de amostras da grande massa de manuscritos ainda não publicada A decisão editorial, contudo, foi pautada pela riqueza da erótica marioandradina, que se manifesta de forma vigorosa em todo seu conjunto.

ARTES DE BRINCAR

Mano, vamos fazer Aquilo que Deus consente: Ajuntar pelo com pelo, Deixar o pelado dentro.

— Mário de Andrade, Macunaíma: O herói sem nenhum caráter

O CORPO DA CIDADE

Eu sei coisas lindas, singulares, que Pauliceia mostra só a mim, que dela sou o amoroso incorrigível e lhe admiro o temperamento

hermafrodita…

  • Mário de Andrade, “De São Paulo – I”

COISAS DE SARAPANTAR

… estou um bocado aturdido, maravilhado, mas não sei… Há uma espécie de sensação ficada da insuficiência, de sarapintação, que me estraga todo o europeu cinzento e bem arranjadinho que ainda tenho dentro de mim.

  • Mário de Andrade, O Turista Aprendiz

PRESENÇA DA DONA AUSENTE

Esta noite tive um sonho, Um sonho muito atrevido: Apalpei na minha cama

A forma do teu vestido.

— Mário de Andrade, As melodias do boi e outras peças

IMORALIDADES E DESMORALIDADES

[…] o único, íntimo defeito, ou modalidade de ser ou fatalidade climática e política e social principalmente que temos e é nossa base de ação e até de sentir: desorganização moral.

— Mário de Andrade, carta a José Osório de Oliveira (1941)

PRAZERES INDESTINADOS

Te gozo!… E bem humanamente, rapazmente.

Mas agora esta insistência em fazer versos sobre ti…

— Mário de Andrade, Losango cáqui

BRASILEIRISMOS, SAFADAGENS

Já se falou que três brasileiros estão juntos, estão falando porcaria… De fato.

— Mário de Andrade, “Prefácio para Macunaíma

CONFIDÊNCIAS E CONFISSÕES: ALGUMA CORRESPONDÊNCIA

Há no meu ser uma feminilidade essencial que me dá um poder extraordinário de adaptação. Será mesmo feminilidade, passividade, ou antes volúpia incessante, quase monstruosa?… Manuel Bandeira uma feita, diante da minha maneira de ser que

analisava, se viu atrapalhado

— Mário de Andrade, carta a José Osório de Oliveira (1941)


Eliane Robert Moraes é professora de literatura brasileira na FFLCH-USP e pesquisadora do CNPq. É autora de diversos livros, dentre os quais estão: O corpo impossível (Iluminuras/Fapesp, 2016), Lições de Sade – Ensaios sobre a imaginação libertina (Iluminuras, 2011) e Perversos, amantes e outros Trágicos (Iluminuras, 2013). Traduziu a História do olho de Georges Bataille (Companhia das Letras, 2018), e organizou a Antologia da poesia erótica brasileira (Ateliê, 2015), publicada em Portugal (Tinta da China, 2017). Também assina a organização do livro O corpo descoberto – Contos eróticos brasileiros 1852/1922 (Cepe, 2018), que integra uma Antologia do conto erótico brasileiro a ser completada com o título O corpo desvelado (Cepe, no prelo).

[EVENTO]

Mário EROS de Andrade
Evento promovido pelo IEA-USP Instituto de Estudos Avançados da

Universidade de São Paulo e pela BMA – Biblioteca Mário de Andrade

Curadora: Eliane Robert Moraes

Apoio: Ubu Editora

Biblioteca Mário de Andrade (SP)
24, 25 e 26 de maio de 2022 das 19h às 21h.


PROGRAMAÇÃO

Lançamento
Sábado, 21/05, a partir das 11h Lançamento do livro Seleta erótica de Mário de Andrade, com organização e ensaio de Eliane Robert Moraes, publicado pela Ubu Editora.


Abertura por Jurandy Valença e Eliane Robert Moraes,
com performance poético-musical de Iara Rennó.


MARIO EROS DE ANDRADE : palestras, debates e recitais
De 24 a 26 de maio das 19h às 21h.

24/05, terça feira, das 19h às 21 h.
Abertura por Jurandy Valença e Eliane Robert Moraes
Com a escritora Verônica Stigger e a compositora Beatriz Azevedo, ambas ensaístas e estudiosas do modernismo brasile

25/05, quarta feira, das 19h às 21 h.

Com Marcos Antonio de Moraes (ieb-usp) e André Botelho (ufrj), estudiosos e autores de diversos livros sobre Mário de Andrade.
Mediação: Roberto Zular

26/05, quinta feira, das 19h às 21 h.
Conversa sobre erotismo, música e literatura, com leituras de poesia erótica, entre o compositor Zeca Baleiro e a ensaísta Eliane Robert Moraes

Realização
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e
Biblioteca Mário de Andrade
Apoio
Ubu Editora

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