Entrevista: Fernando Peters, músico, compositor, arranjador e produtor

Entrevista: Fernando Peters, músico, compositor, arranjador e produtor

1. O que motivou você a criar Milonga Oscura e qual a ideia central por trás do álbum?

                A maioria das faixas do álbum foi escrita durante a pandemia, em um período de isolamento e incertezas. Então me parece natural que o caráter mais ensimesmado do trabalho passe um tanto por aí. Solidão, a procura por novas conexões e o encontrar-se consigo mesmo, buscar algum propósito naquele período e conseguir fazer arte naquelas circunstâncias. Mas talvez tenha sido apenas uma exacerbação destes sentimentos, já que minha música geralmente navega por estes lados mais densos.

2. Como você descreve a relação entre a sonoridade clássica do piano trio e os elementos de música popular brasileira presentes no disco?

                Eu já vinha escrevendo para piano há algum tempo, embora não seja nem de perto um “pianista”. Existe uma certa mágica na relação de frequências e texturas entre piano, baixo e bateria e o trabalho foi meio que se moldando por aí. Não ousaria tecer comentários mais aprofundados sobre o quanto de música brasileira tem, de fato, ali. É um país extenso, com culturas extremamente diversas. Como cresci e vivi aqui, evidente que absorvi um tanto disso, mas não tenho uma régua clara para medir e não foi algo deliberadamente pensado. Também confesso que nunca tive grande interesse pelo que se convencionou chamar de brazilian jazz. Talvez a entrada destas influências neste trabalho seja mais blurada e menos literal.

3. O álbum explora a melancolia e as diferentes velocidades da passagem do tempo. Como você traduz essas sensações em música?

                Muito pelo que falei na primeira resposta, do momento específico das composições, mas também por outros fatores.  Mesmo com a pandemia no retrovisor, continuamos vivendo em tempos estranhos, de velocidade extrema de informações, cada vez mais desconectadas da verdade, e de dicotomias idiotizantes. Também olho com certa desconfiança para esta necessidade de luz e realização dos dias de hoje, com a dificuldade terrível que a maioria das pessoas parece ter de lidar com a sombra, o cinza e a dúvida. Creio que, de certa forma, este é o mote principal do álbum.

4. Quais foram suas principais referências na composição das faixas? Há influências que vão de Jobim a Piazzolla e Egberto Gismonti, mas como elas se encontram no seu trabalho?

                Honestamente, não sei. Os três nomes citados, juntamente a outros (Led Zeppelin, Stravinsky, Van Halen, Bowie??!?) fazem parte do que me formou como ser humano e me fez buscar um caminho na música. Não acho que eu consiga escapar das marcas que deixaram em mim, mas creio que o que resultou no meu trabalho tenha uma forma própria – assim, espero, ao menos.

5. Como foi o processo de composição e arranjo junto a Júlio Falavigna e Leonardo Bittencourt?

                O Júlio foi o primeiro a ouvir minhas demos e começar a desenvolver um conceito de percussão para as músicas. O Leo veio um pouco depois, quando era necessária a presença de um pianista “de fato”, que pudesse compreender por onde as composições transitavam e qual seria o centro emocional do trabalho. Nesta formatação, de trio, é importante que as pessoas envolvidas tenham alguma liberdade de trabalhar, para que possam assumir um pouco as músicas para si e trazer alguma assinatura própria para o resultado final – ainda que existam coisas mais “composicionais” do que “improvisacionais” em boa parte do disco. Neste aspecto, devo bastante à dedicação e ao talento dispensado pelos dois.

6. A faixa “Tangorine” conta com participação de acordeom de Paulinho Goulart. Como surgiu essa colaboração?

                Tive a felicidade de trabalhar com o Paulinho em outros projetos, como no trabalho acústico do Gessinger, já há alguns anos.  Tangorine, creio eu, é a composição mais recente que entrou no “Milonga” e antes de eu terminá-la já sabia que queria uma outra sonoridade além do trio, para expressar melhor a ideia da música. De novo, devo reconhecer o talento de quem veio se juntar – ele gravou o acordeom basicamente num único take, e o resultado não poderia ser melhor.

7. Você tem uma carreira extensa, com participação em gravações e turnês de diversos artistas. De que forma essas experiências influenciaram o seu estilo no novo álbum?

                Experiência nunca é demais – mesmo as que não são tão boas te oferecem a possibilidade de conhecimento/aprendizado. O fato de ter trabalhado com gente tão diversa, fazendo música tão diversa, reflete em quem eu sou como artista, certamente.

8. Como produtor do disco, quais desafios técnicos ou criativos você enfrentou durante a gravação, mixagem e masterização?

                Apesar de ter trabalhado até como engenheiro de som durante um tempo da minha vida, me mantenho relativamente afastado de questões mais técnicas – minha preocupação é que o registro (gravação) e a finalização (mix, master) possam refletir a proposta artística de um trabalho. Para isso, contei com a dedicação do Fábio Mentz e do Luciano albo, que gravaram e mixaram o disco, e do Marcos Abreu, responsável pela master. O disco tem piano de cauda, piano de parede, diferentes instrumentos e captações – a maior unidade, imagino eu, veio das composições. Produzir, no meu caso, está mais perto de achar um caminho criativo consistente e justificável.

9. O álbum dialoga com tangos, milongas e jazz contemporâneo. Como você define o seu universo musical para quem ainda não conhece o seu trabalho?

                Talvez essa seja a pergunta que ninguém quer responder – ou deveria ser assim: buscar por um rótulo tende a ser limitador. O próprio nome do disco tem mais um caráter emocional do que enciclopédico. Não fujo da óbvia relação com o jazz, até pelo formação primordial do trabalho, mas é possível que alguém relacione composições e estruturas mais com outros gêneros, já que não existe tanto o jogo tema-improviso no corpo do álbum. A música “do Prata” (essa região geográfico-imaginária entre Brasil, Argentina e Uruguai) está ali também, mas longe de mim me apropriar de  bandeiras regionais que talvez não façam tanto sentido pra mim.

10. Você considera que Milonga Oscura possui uma mensagem ou sentimento que gostaria que o público levasse para além da música?

                Arte é uma expressão de humanidade – mas é uma expressão necessariamente pessoal. E por mais que tenhamos discutido alguns tópicos durante esta entrevista, no fim das contas, arte não tem legenda. Espero, honestamente, que o disco fale por si só. E também quero crer que ele o fará melhor do que eu.

11. Existe algum momento do álbum que você considera especial ou mais representativo da sua trajetória musical?

                Difícil dizer. Hoje, creio que “Serpentine” e “Milonga Oscura”, talvez, ilustrem bem este meu momento. Mas não consigo imaginar o álbum sem nenhuma das outras seis…

12. Quais são os próximos passos da sua carreira e projetos futuros após o lançamento de Milonga Oscura?

                Eu sempre trabalhei com outras pessoas e tenho, verdadeiramente, grande prazer em fazê-lo – portanto, devo continuar tentando levar algo meu a alguns outros projetos. Mas também devo me concentrar mais no meu próprio trabalho, que naturalmente reflete melhor minha visão de mundo – é uma necessidade artística e pessoal.

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