Entrevista: Viviane Rodrigues, diretora de Não São Águas Passadas

Entrevista: Viviane Rodrigues, diretora de Não São Águas Passadas
  1. O curta Não São Águas Passadas aborda o apagamento histórico da escravidão em Portugal. O que motivou você a escolher este tema e filmar no país?
    Durante o meu primeiro ano como imigrante em Portugal, percebi que esse tema era um verdadeiro tabu. Conforme comecei a buscar canais mais especializados de pesquisa, confirmei que minha sensação correspondia à realidade: não se fala sobre escravidão nos manuais escolares, nem quando se anda pelas cidades. Não há quase nada de museus, memoriais ou referências culturais que reflitam sobre isso. O pouco que existe é fruto do esforço da própria comunidade negra, e não da sociedade em geral. Essa ausência mexeu profundamente comigo e foi o que me motivou a pensar, pesquisar e refletir mais sobre o tema.
  2. Como foi a pesquisa para identificar os locais históricos e a ausência de referências sobre a escravidão no espaço urbano e cultural português?
    A partir desse incômodo inicial, comecei a visitar museus e tive o primeiro contato com a African Lisbon Tour, iniciativa do nosso personagem principal, Naky Gaglo. Esse projeto mostra a cidade sob a perspectiva histórica dos povos africanos, trazendo uma crítica à colonização portuguesa e ao tráfico negreiro. A partir daí, aprofundei a pesquisa, recorrendo a bibliografia de estudiosos como Laurentino Gomes, no Brasil, e Cristina Roldão e Isabel de Castro Henriques, em Portugal. A investigação começou dentro de um curso de montagem de filmes de arquivo, mas percebi rapidamente que o assunto era muito mais complexo, com mais de quatro séculos de história a serem revisitados. Por isso, o projeto ultrapassou os limites do curso e se transformou neste curta — que vejo, na verdade, como um primeiro ato.
  3. O projeto foi realizado de forma independente, com equipe majoritariamente branca. Como essa escolha impactou a produção e a mensagem do filme?
    Desde o início pensei no projeto como um filme urgente, que não poderia esperar por editais ou apoios institucionais. Com recursos limitados, entendi que seria inevitável contar com o trabalho voluntário de muitas pessoas. Mas, por se tratar de um filme sobre escravidão, não fazia sentido algum pedir que pessoas negras trabalhassem de graça. Por isso, todas as pessoas racializadas envolvidas foram remuneradas de alguma forma, mesmo que simbolicamente. Ao mesmo tempo, convidei aliados brancos antirracistas para contribuir voluntariamente. Essa escolha, além de viabilizar a produção, reforçou a ideia de responsabilidade compartilhada no enfrentamento do racismo e da colonialidade.
  4. A narração e o acompanhamento histórico de Naky Gaglo são marcantes. Como surgiu essa parceria?
    Eu o procurei após participar de uma das suas tours em Lisboa, que durou quatro horas e me impactou profundamente. Convidei-o para participar do filme e ele aceitou com generosidade. Naky não apenas gravou a narração e autorizou o uso das imagens da tour, como também ajudou a estruturar a narrativa, confirmar informações e orientar caminhos históricos. Ele se tornou uma figura central na construção do curta.
  5. A presença de Bia Ferreira adiciona uma dimensão contemporânea e política à obra. Como foi essa colaboração?
    A Bia participou de forma especial, narrando um trecho emblemático do filme sobre a vala de Gafaria, momento horrível da história que queremos trazer à luz. Estava em turnê em Portugal e trocamos muitas ideias sobre o silenciamento das influências africanas. Sua participação trouxe não apenas força artística e política, mas também contemporaneidade ao discurso do curta.
  6. Qual é a mensagem central que você deseja que o público leve consigo após assistir ao filme?
    Embora não possamos mudar o passado, é no presente que podemos encontrar ferramentas para mitigar as consequências desse período e cobrar uma posição realista de Portugal. Se não assumirmos que esse passado existiu e reconhecermos responsabilidades, não há como pensar em reparação. Essa reflexão precisa chegar à educação, aos livros didáticos e à memória urbana.
  7. Quais desafios você enfrentou ao produzir o filme sem apoio institucional e com recursos próprios?
    Foi um grande desafio. Tivemos que assumir todas as etapas com recursos limitados, equilibrando viabilidade financeira, ética e integridade artística. Garantir remuneração às pessoas racializadas e contar com trabalho voluntário de pessoas brancas exigiu cuidado e responsabilidade.
  8. Você mencionou o desejo de expandir o projeto para um longa. O que pretende aprofundar?
    A discussão sobre escravidão e colonialidade é muito mais profunda do que um curta pode dar conta. Minha ideia é transformar este curta em um caso de sucesso, abrindo caminho para captar recursos e produzir um longa com pesquisa ampliada, especialistas, equipe estruturada e tempo adequado para desenvolver a narrativa com a profundidade necessária.
  9. Como você enxerga o papel do cinema na reparação histórica e na conscientização sobre escravidão e racismo?
    Vejo como fundamental. A arte, em geral, cria espaço para reflexão e questionamento. O cinema, em especial, pode documentar, denunciar e inspirar transformações sociais. Quanto mais conseguirmos transformar críticas sobre estruturas injustas em obras artísticas, mais essas ideias se espalham e alimentam debates coletivos.
  10. Que impacto você espera que Não São Águas Passadas tenha no Brasil e em Portugal?
    Espero que contribua para que Portugal revise seu discurso histórico e político, ensinando corretamente às novas gerações o que aconteceu. Também desejo que ajude a nomear práticas racistas e xenofóbicas ainda presentes, mostrando que têm consequências sociais e legais. A expectativa é que o filme inspire uma revisão crítica da memória, da colonialidade e das responsabilidades históricas em ambos os países.

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