Entrevista: Vítor Kappel, escritor

1. O título “Sob o Céu de Isaías” possui algum significado especial ou simbólico dentro da narrativa para você? Como ele se conecta com a jornada do protagonista?
Sob o céu de Isaías é, em essência, um romance de formação. Seu protagonista, Isaías, um aluno exemplar, carrega uma paixão pelo espaço sideral. Além desse aspecto, gosto do céu como algo simbólico porque ele carrega alguns mistérios, ele nunca é o mesmo por muito tempo, mas sempre é o céu. A sua essência está lá, mesmo transmitindo a luz solar, ou operando por raios. Funciona, portanto, com um espelhamento da trajetória de um adolescente, sobretudo desse em peculiar. As mudanças de luz, cores, e nuvens simbolizam as possibilidades de transformação e recomeço a cada novo instante.
2. O release destaca a pureza da essência de Isaías mesmo em meio ao seu amadurecimento. Como essa característica se manifesta ao longo da trama e quais desafios ela enfrenta, na sua visão como criador da história?
Isaías carrega uma pureza e bondade raras hoje em dia, enquanto aprende a se posicionar, enfrentar os próprios demônios, a disfuncionalidade comportamental dos pais e a sua própria cidade. Ao longo dos seus dilemas sobre sexualidade, esse herói contemporâneo encara o resumo de um país recheado de mazelas e preconceitos, de modo que há um paralelismo poderoso em seu ritual de passagem para a fase adulta, ao ter que enfrentar tudo isso com certa graça e tenacidade.
3. O ambiente da cidade do interior com colégios de padres e a degradação da natureza são elementos importantes na formação de Isaías. De que forma esses aspectos moldaram a personalidade e as buscas do protagonista que você idealizou?
Esse jovem sonha em fugir – literalmente – da pequena cidade que o aprisiona, mas antes, precisa enfrentar perigos muito maiores do que provas ou mesmo o ENEM: uma rede criminosa, dilemas internos e a descoberta do amor. Todos os pontos destacados reforçam o caráter de constrição (do conservadorismo hipócrita, muitas vezes com base religiosa) em torno da série de experiências vividas por Isaías, que cismam em oprimi-lo. Daí a necessidade profundamente humana de enfrentar e ressignificar esses elementos, sendo que alguns ocorrem de maneira velada, outros nem tanto. O livro aborda, então, um puritanismo que assola o país e que se manifesta impondo códigos de conduta em nome de valores “tradicionais”. Ele se infiltra no discurso público, na educação, política, e na cultura, provocando estigmatização e culpa. Nesse sentido, muitas vezes há uma sensação de uma luta de Davi versus Golias, por parte do protagonista.
4. O humor agridoce é apontado como uma característica incomum em romances queer. Como você equilibrou esses tons na narrativa e qual o efeito desejado no leitor?
Desde “O Apanhador no Campo de Centeio” de J.D. Salinger, até filmes como “Lady Bird”, de Greta Gerwig, vemos como a busca por independência é complexa, ora mostrando como o processo de se descobrir é profundamente tragicômico na medida em que exige também se questionar – sem muita garantia de que gostaremos das respostas. No caso então do livro, sempre tive em mente o desejo de não carregar em tintas melodramáticas, optando por uma comicidade melancólica. Creio no humor como uma via exploratória importante da fragilidade humana garantindo empatia e beleza ao desarmar resistências em temas mais complexos. No fundo, penso que esse foi o maior desafio ao escrever a obra, ser consistente com o tom desejado, isso porque uma narração um tanto irônica e afetiva é uma difícil combinação, mas que serve para retratar um pouco esse ritual de passagem estranho e tortuoso – a adolescência.
5. A relação de Isaías com Bernardo surge como um vínculo afetivo transformador. Poderia nos adiantar um pouco sobre a dinâmica dessa relação e seu impacto no desenvolvimento de Isaías?
Esse é um ponto que prezo bastante no livro. O amor é um dos temas mais universais da literatura, abordado de diversas formas ao longo da história, mas que, na minha opinião, vem sendo trocado, com o perdão do trocadilho, por outros, talvez até por conta dos tempos sombrios que vivemos e do próprio cinismo que nos rodeia. De certa forma, buscar uma dimensão desse tema é uma tentativa de ir na contramão hoje em dia, e isso traz alguns desafios. Primeiro, achar alguma brecha de originalidade na dinâmica entre Isaías e Bernardo. Segundo, entender que a descoberta do amor por parte de Isaías envolve Bernardo, mas envolve também a busca por amor-próprio. Nesse sentido, Bernardo funciona como um gatilho calibrado, ora sensível e emocional, ora vulgar e físico, capaz de injetar em Isaías o desejo sóbrio, em meio à loucura dos sentimentos, de agir diferente.
6. A presença de uma rede criminosa na cidade representa um obstáculo significativo para o futuro de Isaías. Como esse elemento de suspense se entrelaça com a jornada de autodescoberta do protagonista?
A escolha narrativa por uma rede criminosa foi criada a favor da movimentação da trama, mas também para garantir um frescor na abordagem do tema central de emancipação e identidade. Não só isso e não querendo dar spoilers, mas a existência da rede atravessa diretamente a vida de Isaías e funciona também como uma metáfora maior sobre sua própria prisão: suas amarras mentais, emocionais e até mesmo físicas. Como ele a enfrenta é o ponto central sobre o processo de amadurecimento, e isso passa por certa inventividade, resiliência e coragem.
7. Carol Bensimon e Helena Terra tecem elogios à obra, destacando a “rara combinação de leveza com profundidade” e o frescor da escrita. Como você recebeu essas impressões de escritoras renomadas?
Quando li “o Clube dos Jardineiros de Fumaça” da Carol, fiquei emocionado. Na minha opinião, é um dos melhores livros da literatura contemporânea, uma obra-prima. E Helena faz milagres com as palavras, não por acaso o seu último livro “Os dias de sempre” foi finalista do prêmio São Paulo de Literatura. As duas têm vozes marcantes e prosas irretocáveis, e para completar, opiniões honestas sobre o que leem. Então foi uma bênção. Em retrospecto, acho até que eu deveria ter acendido umas velas quando enviei o original, tamanho o receio que tinha. Mas deu certo. Sou eternamente grato, então, pelas impressões, pois realmente sou fã das duas, e as admiro profundamente.
8. O romance é descrito como um “romance de formação”. Quais foram os principais aspectos da adolescência que você explorou na trajetória de Isaías?
É curioso que em determinado momento do livro há um trecho que fala mais explicitamente sobre a adolescência, esse cruzamento de muitas coisas, esse hibridismo caro, esse bolo de raiva, euforia, medo, pavor, ansiedade, irritação, paixão, estranhamento, horror, alegria, excitação, tristeza, excitação ao quadrado, nostalgia da infância etc. Isaías não foge da regra, mas por alguma razão, ele consegue ser um íma para confusões maiores e que, portanto, funcionam para desafiá-lo ainda mais, seja no conflito com figuras de autoridade, seja na necessidade e busca de pertencimento. Em função da bolha em que vive, Isaías no fundo no fundo tem uma dificuldade central, que é lidar com a sexualidade, e de certo modo isso ecoa inúmeras vozes que simplesmente são apagadas por um motivo inaceitável: amar.
9. Considerando sua formação em engenharia e a recente dedicação à escrita, como foi para você, como jovem escritor, “testar sua vocação” com este primeiro romance? Quais foram os maiores desafios e as maiores recompensas nesse processo?
Acho que a primeira expectativa, já alcancei: sentir essa mistura de empolgação e medo, o que é libertador de um jeito estranho. Há uma frase que faz todo sentido: escrever significa ouvir o silêncio. É um processo árduo, em que é difícil enxergar o horizonte, a sensação que tive foi a de percorrer uma trilha pesadíssima e inúmeras vezes (afinal, parte do segredo é reescrever) com a luz de um fósforo. Tudo isso para chegar numa espécie de Eldorado, que tampouco é real. Os maiores ganhos, acredito eu, estão no processo, no entendimento de que a imperfeição também tem lá sua beleza. Esse livro, portanto, é uma tentativa de organizar o caos que acredito que a mente de qualquer escritor tem, o que não deixa de ser de certa forma, ironicamente, um trabalho de engenharia.
- Quais são suas expectativas para o lançamento de “Sob o Céu de Isaías” e qual mensagem você espera que os leitores levem consigo após a leitura?
Que quem leia possa se enxergar nesse personagem um tanto atrapalhado, mas genuinamente bondoso. Que é capaz de superar os obstáculos de forma criativa, e com surpreendente resiliência. Que as pessoas possam se inspirar com o tom agridoce da história, e um humor curioso que insiste em aparecer em meio à tensão e ao caos. Acho que essa é uma forma de enxergar esperança diante de sombras ousadas que teimam em surgir nas nossas vidas e de deixar o copo meio cheio um pouco mais cheio. David Foster Wallace disse o que muitos escritores falam de forma diferente: “O humor é uma das maneiras mais eficazes de lidar com a dor.” Acho que, mesmo na tragédia, ou até por conta dela, Isaías traz em seus ombros uma amostra desse remédio.