Entrevista: Juliana Kilburn, atriz

Juliana, como foi receber o convite para interpretar Patrícia em uma série tão potente e com um tema tão sensível como o caso Jean Charles?
De fato, receber o convite para interpretar o papel da Patrícia foi um momento definitivo na minha vida. Não vou mentir, eu certamente senti o tamanho da responsabilidade que seria trazer a trajetória da Patrícia para a TV desde o começo do projeto.
A série aborda temas como justiça, direitos humanos e erro policial. Como você se preparou emocionalmente para viver uma personagem diretamente envolvida em uma tragédia real?
O trabalho emocional, assim como mental, foi bem extenso e intenso. Eu senti uma grande conexão com as raízes da Patrícia, sua trajetória, a sua proximidade com a família e seu país, então o primeiro passo para mim foi separar o que é a Patrícia e o que é a Juliana. O meu luto, o luto dela, a minha raiva e a raiva dela. Eu fiz uma pesquisa extremamente extensa quanto ao caso e, principalmente, quanto ao tratamento que a família estava recebendo da mídia e do governo britânico. Sentir a dor da perda e o sentimento de justiça não foi o mais desafiador; o desafio, na verdade, foi viver o meu dia a dia fora do set, passar por lugares marcantes do caso sem sentir todo o cargo emocional que ele carrega. Esse trabalho mudou meu relacionamento com Londres.
A Patrícia é descrita como uma das figuras centrais na busca por justiça. O que você pode nos contar sobre ela e o que mais te tocou nessa personagem?
A Patrícia é uma pessoa incrível. A forma como ela aplicou o luto e a raiva quanto ao acontecido na sua campanha de justiça foi simplesmente admirável; canalizar tudo isso e se colocar na frente de um público que não fala sua língua e não entende a sua cultura, na esperança de que você seja ouvida e que algo seja feito, é de uma coragem admirável. A personagem me inspirou de uma forma surreal! Patrícia simboliza a força de uma mulher imigrante que vai lutar pelos seus direitos e pelos direitos de quem ela ama. Acho que nisso somos muito parecidas.
Como foi trabalhar sob a direção e produção de nomes como Jeff Pope e Kwadjo Dajan? Que aprendizados esse set te proporcionou?
Trabalhar com o Kwadjo e o Jeff foi um verdadeiro presente, desde o início, me senti ouvida, respeitada e inspirada. Eles foram extremamente cuidadosos com o material, tratavam cada cena e personagem com muita atenção e carinho, o que me deu ainda mais confiança no processo.
O que mais me tocou foi a forma como ouviram minhas preocupações com sensibilidade e sempre estiveram disponíveis para conversar, ajustar detalhes e buscar juntos o melhor caminho criativo. Criaram um ambiente de trabalho acolhedor, generoso e colaborativo, e isso fez toda a diferença na minha entrega como artista. Sou profundamente grata por essa parceria tão especial.
O Kwadjo, por saber da minha experiência como produtora, me convidou no set algumas vezes para eu observar o seu trabalho e me aprofundar nos desafios e na rotina da produção da série, além de ter o privilégio de observar atores como Conleth Hill em cena.
A série tem previsão de estreia global no Disney+. Qual é a expectativa de ver essa história sendo contada para o mundo?
Eu espero que o público finalmente veja esse caso como ele é, uma versão sem a interferência e o preconceito da mídia. A minha expectativa é que o público veja o que realmente aconteceu com o Jean.
Você cresceu entre o Brasil e o Reino Unido. Como essa vivência entre dois mundos moldou sua carreira artística?
Essa vivência me abriu portas, com certeza, mas também completamente me roubou um senso de identidade. No Brasil, os papéis disponíveis para alguém com o meu perfil são uns, e no Reino Unido, são outros. Às vezes me sinto perdida nesse mar de opiniões, onde cada um acha que eu devo me encaixar em certos estereótipos.
Por isso, para mim, foi tão importante interpretar a Patrícia. Ela é uma mulher que perdeu o primo em busca por justiça. Ela não é definida como “a brasileira”, “a imigrante”, a hiperfixação nos rótulos me incomoda profundamente. De certa forma, crescer entre dois mundos me permitiu mesclá-los, me permitiu representar um grupo de pessoas que não se veriam na TV britânica nem tão cedo.
Dominar dois idiomas e sotaques te abriu muitas portas. Como essa habilidade tem influenciado as oportunidades que surgem para você?
A busca do ator é ser adaptável, moldável, um grande transmorfo? (shapeshifter). Ter a habilidade de ir de um espectro ao outro me ajuda muito. Como eu disse, eu não sou fã dos rótulos que a indústria joga no seu colo, então poder desafiar isso com a fala, o sotaque, idiomas, me liberta.
Na Inglaterra, eu já tive a oportunidade de interpretar personagens ingleses, latinos e estadunidenses. Já tive oportunidades de fazer testes para filmes com Mark Ruffalo, Robert Downey Jr. e etc.
Além de atriz, você também é produtora. Como você equilibra esses dois papéis e quais projetos de produção estão em vista para o futuro?
Às vezes o equilíbrio vem na força do ódio, haha. Brincadeiras à parte, depende muito das ofertas que estão aparecendo para mim. A vida no set pode, às vezes, interferir, porém existem momentos onde ambos (atuação e produção) se cruzam.
Eu não produzo apenas projetos onde eu me vejo trabalhando como atriz. Recentemente, produzi um show de cabaré (inspirado em flamenco) em Londres, e a repercussão desse projeto foi tão grande que estaremos performando este ano em diferentes cidades e no Southbank Centre, que é um teatro extremamente renomado da Inglaterra, do ladinho da London Eye.
Estou também produzindo um filme de longa-metragem com um diretor que, por mais que eu não possa anunciar nomes, já trabalhou para Channel 4 e BBC.
Em 2022, você foi reconhecida com prêmios por atuações no teatro e no audiovisual britânico. Como essas conquistas contribuíram para o seu reconhecimento no mercado?
Foi uma honra imensa e, sem dúvida, um marco na minha trajetória. Mais do que o reconhecimento em si, essas conquistas abriram portas importantes e trouxeram visibilidade ao meu trabalho, tanto no teatro quanto no audiovisual britânico.
Sinto que foram também uma forma de validação do caminho que venho trilhando com tanta dedicação e amor pela arte. Isso me conectou a novos profissionais, projetos e possibilidades, e fortaleceu minha confiança para seguir explorando e me desafiando como artista. Sou muito grata por tudo o que esses momentos me proporcionaram.
Você acredita que existe uma diferença marcante entre a atuação no Brasil e no Reino Unido? Quais são os principais contrastes?
Com certeza existem diferenças marcantes, mas isso é justamente o que torna o intercâmbio entre as duas culturas tão rico. No Brasil, há uma energia muito visceral na atuação, algo muito conectado à emoção, ao corpo e à improvisação. Já no Reino Unido, percebo um rigor técnico muito forte, com grande foco em texto, ritmo e tradição shakespeariana.
Ambos os estilos têm suas belezas e forças, e acho que o mais interessante é quando artistas conseguem transitar entre esses mundos, misturando a expressividade brasileira com a precisão britânica. No fim das contas, é tudo sobre contar histórias de forma autêntica, e isso é universal.
Teve alguma cena em especial que te marcou profundamente durante as gravações da série?
A cena do funeral do Jean foi a última cena que eu gravei na série e, sem sombra de dúvidas, foi a cena que mais me marcou. Acho que não preciso explicar muito o porquê de ela ter sido marcante. Foi uma cena complicada emocionalmente e até mesmo a tecnicidade dela foi difícil. Tínhamos centenas de figurantes, poucas horas de luz natural e muita, muita emoção borbulhando.
Como foi o processo de pesquisa e envolvimento com os familiares do Jean Charles? Vocês tiveram algum contato?
Sim, a produção obviamente já os conhecia e se conectava com eles sempre durante a produção. Assim que fui selecionada, eles ofereceram me conectar com a família logo de primeira, o que foi ótimo. Conheci todos em um dia só, nos sentamos juntos, conversamos sobre a sua experiência, seus medos, lembranças, etc.
Eu dividi com todos a minha responsabilidade e preocupação em trazer para eles o senso de verdade que eles, como família, querem e merecem muito. A Patrícia foi muito aberta, ela abriu o coração dela para mim de uma forma que eu sou muito grata. Eu ainda tenho contato com a Patrícia e trocamos mensagens sempre que possível.
O que você espera que o público brasileiro sinta ou reflita ao assistir à série?
Boa pergunta. A mensagem para o público britânico é óbvia. Para os brasileiros, eu espero que vocês se sintam vistos. Espero que vejam como tentamos dar voz para o nosso povo com o tempo e trabalho que fomos dados. Não vai ser uma série fácil de assistir, não vai ser uma série que vai te trazer paz, mas que seja uma série que te mostre a verdade! O caso do Jean foi um grande erro que poderia ter acontecido com qualquer pessoa nesse país que, para eles, não “se encaixa aqui”.
Que conselhos você daria para jovens atores brasileiros que sonham em trilhar uma carreira internacional?
Saiba o que você é e o que você não é, pois todo mundo vai tentar te dizer o que você deveria ser. Vão opinar sobre sua cor, seu sotaque, seu cabelo e até sua forma de andar. Mas nada disso importa se você está com você, se você sabe onde gostaria de estar.
Não foi uma jornada fácil, já perdi as contas de quantas vezes pensei em desistir, quantas vezes me senti absolutamente sozinha nesse caminho.
Se você sair do familiar para o desconhecido, te aconselho a acreditar em você de uma forma bem estúpida, de uma forma tão inabalável que ninguém vai ser capaz de te quebrar no caminho para o seu sucesso. Seja onde for que você vá, há espaço para você SIM, e, se não tiver, você cria!
Se pudesse resumir sua participação na série em uma palavra, qual seria – e por quê?
Catártico. Diria que foi um processo catártico, um projeto que virou uma página para mim e para outros. Um processo de cura, para mim e para outros.