Entrevista: ANNÁ, multiartista

Entrevista: ANNÁ, multiartista
  1. O EP “DEUSA” é apresentado como o primeiro ato de um álbum maior, o “Deusa Diaba da Terra do Sol”. Como nasceu essa ideia de lançar o disco em três atos?

Juro que surgiu antes da Beyoncé lançar o projeto dela, que também é dividido em atos kkk. Quando ela lançou eu já tinha a ideia, então pensei  “olha, estamos alinhadas”. Enfim, essa ideia surgiu em conversas com amigos, especialmente meu roomie da época, César Filho, e com o produtor Allan Gaia.  A ideia dos atos vem de um desejo de construir um projeto que contemple diversas áreas artísticas, misturando linguagens. Eu sou uma artista de diversas linguagens, e este álbum explora minha versatilidade, pois parte de um referencial de cinema (Glauber Rocha), traz coreografias e dança pra quase todas as faixas, tem uma preocupação visual que engloba moda e artes plásticas, e utiliza este formato de atos teatrais em sua divulgacão. Fica faltando a literatura, mas pretendo trazer poemas nos shows.Percebemos também que separar em 3 atos dava outro sentido para o título. Quando se lê tudo junto DEUSADIABADATERRADOSOL é um significado. Quando separamos palavra por palavra, as possibilidades crescem muito. A partir dessa separação que consegui enxergar o potencial temático de cada ato. Assim, o Ato I Deusa foca em espiritualidade, o Ato II Diaba vai falar muito sobre “pecados”, mais num sentido de desafios da vida contemporânea como consumismo, pressa etc.; e o “Da Terra do Sol” é sobre o cotidiano no bairro, a vida corriqueira.

  1. Você menciona que o processo criativo do EP foi profundamente ligado às suas experiências espirituais. Que tipo de vivências foram essas e como elas influenciaram diretamente as músicas?

Eu sou uma colagem espiritual tecida por experiências e relatos diversos. Como muitas brasileiras, a família da minha mãe é evangélica e do meu pai católico. Na adolescência em Mococa, minha cidade natal, mergulhei fundo demais na igreja evangélica, cantava nos cultos e assumi muitas responsabilidades. Preguei várias vezes, era uma mini pastorinha com meus 13 anos, mas saí. Vim morar em SP e chegando aqui ouvi tocar um tambor na rua. Assim conheci o Ilú Obá de Min, bloco feminino de cultura afro. Fiquei apaixonada e cantei lá por 5 anos, aprendi muito sobre cultura afro-brasileira, entendi o significado de orixá, cantava muita coisa até em yorubá, então ali outra cosmogonia se formou em minha alma. Na mesma época fui levada a rituais de ayuasca, rituais sincréticos que misturavam Santo Daime, Cristianismo, Candomblé e Budismo. Foram experiências mágicas transformadoras. Também tomei e tomo passes espíritas, medito, vou a missas. Meu irmão acabou de se casar com uma judia, então o sincretismo é realmente forte na minha vida. E para mim cada manifestação espiritual dessa me fascina, uma se soma a outra, como galhos de uma árvore. As flores são as essas músicas, que expressam indiretamente as sensações dessas experiências. Então na faixa 1 Deusé Brasileira, começamos com um som de cachoeira, remetendo à maior manifestação divina pra mim que é a própria natureza. Ano passado eu vi uma cachoeira tão linda na Chapada Diamantina, até chorei de emoção olhando para ela, senti a força do sagrado naquele momento, e trouxe essa força para abrir o álbum. Em seguida na letra falamos que Deus macumbeira e crente, expondo essas duas fortes religiosidades do Brasil. Nessa música as referências religiosas estão bem explícitas. Mas na próxima, Bom Astral, estão mais sutis. Utilizamos as palavras ‘céu’ e ‘fé’ , mas de forma leve, e o que impera é o Bom Astral mesmo, a energia boa, remetendo à física quântica de Einstein que afirma que ‘tudo é energia’. Se tudo é energia eu quero energia boa, um bom astral! Já na faixa 3 Pipa Avoada é uma reconexão minha com o passado na igreja evangélica, de uma forma leve e risonha, num funk muito dançante. A faixa 4 vem para desconstruir a ideia de que a Deusa ou a espiritualidade se separa da sexualidade. Não separa. A Deusa também sente tesão, expressa isso e todo mundo tá ok.

  1. A espiritualidade é um pilar central no EP, e você menciona influências afro-brasileiras, cristãs e até da física quântica. Como essas diferentes vertentes coexistem na sua obra?

A ideia é que as diferentes vertentes coexistam em paz e harmonia, apesar de suas diferenças. O sentido político deste EP é construir pontes entre as diferentes cosmogonias, gerando trocas frutíferas, e que a intolerância religiosa se torne uma questão do passado, pois num mundo cada vez mais globalizado as trocas são inevitáveis, então precisamos construir pontes espirituais, já que as distâncias físicas estão cada vez menores. Entendendo que conhecer uma nova forma de espiritualidade pode expandir minha visão e até minha capacidade cerebral, sendo algo que soma e não subtrai da minha vida.

4) Você também diz que não coloca muros entre espiritualidade e sexualidade. Pode falar mais sobre essa visão e como ela aparece nas faixas de “DEUSA”?

Já sabemos que historicamente em várias culturas a mulher é privada de se expressar sexualmente. Burca, santa, virgem. Essa castração é tão limitante, é tanto potencial perdido, potencial de prazer e realização também. Por isso fiz questão de colocar essa faixa mais escrachada, “Todo Mundo tá Ok” fechando o primeiro ato, pra reforçar que mulher tem desejo sexual e está tudo bem expressá-lo e vivê-lo, seja assim pegando geral, seja de uma forma mais intimista, enfim, o importante é todo mundo se sentir em paz pra poder beijar na boca, que é uma das coisas mais gostosas da vida, amém!

5) A fé brasileira, especialmente o sincretismo religioso, tem uma sonoridade própria pra você? Como ela se traduz em som?

Nossa especificidade é nossa variedade. Tambores, caxixis, órgãos e pianos, flautas, sinos, coros, bandas de igreja, OMMMMMMMs, mantras, silêncios. Tentei expressar um pouco dessa diversidade espiritual nossa, mas precisaria de uma vida inteira para aprofundar melhor. Este EP é um voo rasante sobre as águas coloridas da nossa vasta espiritualidade sincrética brasileira.

6) Diferente dos seus trabalhos anteriores, onde havia uma mistura rítmica dentro de uma mesma faixa, agora cada música parece habitar um ritmo por mais tempo. O que te motivou a adotar esse novo formato?

Que ótima observação. Mudar de ritmo é legal, é dinâmico, surpreende, mas cansa. Muita gente não acompanha a mudança e fica pra trás, muita gente não muda o passo a tempo e desiste de dançar. 

Então, eu, agora, meio que por maturidade, meio que por preguiça, meio que por popularidade, resolvi repousar um pouco mais. Sabe aquela história do sabor apurado de cozinhar em fogo lento? É por aí.

7)  Como foi trabalhar com nomes como Helô Ferreira, Rafa Castro, DU4RTE e Allan Gaia Pio? Como cada produtor colaborou para essa diversidade de sons e sensações no EP?

Para mim o processo é tão importante quanto o resultado. Então o processo tem que ser minimamente prazeroso. Se fosse pra ser chato eu ia trabalhar com outra coisa. Então todas essas produções foram muito divertidas.  Algumas foram bem rápidas. O Pipa Avoada por exemplo, a gente levantou a base inteira em meia diária, e gravou trombone e voz em outra metade de diária, ou seja, ficou pronta em um dia, porque eu já sabia o que queria e o Du4rte é bem esperto. Presencial eu fui guiando, sentadinha do lado dele no computador, e ele foi construindo, pá pum.  Já a Deusé Brasileira, com a Helô Ferreira, foi muito trabalhosa, porque envolveu escrever um arranjo em partitura, mandar para muitos músicos, marcar horário, até todos eles irem até o estúdio gravar. Mas foi gostoso também encontrar cada um presencialmente, conversar, comer um lanchinho ali juntos e envolver todas essas pessoas no processo do álbum. A Helô também fez a direção musical geral comigo, passamos bastante tempo juntas, e eu confiei nela de olhos fechados, ela faz sucesso.  Com o Allan foi híbrido, pois a faixa tem uma base digital de beats que ele fez e me mandou (e arrasou porque ele é um grande batuqueiro digital e orgânico), e depois fomos pro estúdio com alguns músicos que gravaram sanfona, bandolim, baixo, e a voz linda da Sarah Roston. Já com o Rafa Castro foi rápido, tivemos uma primeira conversa presencial, depois almoçamos juntos num restaurante coreano. Ele é muito independente, basicamente construiu tudo e me mostrou pronto. Dei alguns pitacos aqui e ali e pemba, sabemos um hit! A Helô até fez umas contribuições no Bom Astral também, sugeriu do Rafa deixar a harmonia mais simples, e assim foi.

8) O que representa para você o uso de elementos como baião, ijexá, funk e piseiro nesse projeto?

São ritmos muito familiares pra mim, que eu gosto muito e que me fazem dançar instantaneamente. Meu corpo responde muito, essa foi uma das principais réguas desse álbum, mexer o corpo. Então escolhi esses elementos de lugares e tempos diferentes do Brasil, neste eixo SP-RJ-NORESTE, rumo a linha do equador, em seus ritmos ancestrais, porém atualizados. O ijexá, tão ancestral, misturado ao contemporâneo piseiro, remetendo também a seu avô, o Baião, são quase uma árvore genealógica rítmica do Brasil.

9) “Deusé Brasileira” abre o EP com força. Qual foi a inspiração por trás dessa faixa e o que ela simboliza dentro do contexto geral do álbum?

Compus essa canção com o Gabriel Muca. Ele é muito carismático, tem uma malemolência do samba que contrastava com meus versos mais fritos e rápidos (de) repentistas. Contrastamos e nos equilibramos nas nossas diferenças. Chamei ele para compor algo que representasse a fé brasileira. Ele é firme no terreiro de umbanda, já eu quis trazer um verso que agradasse minha mãe evangélica, daí essa mistura “Deusé (assim sem gênero) Macumbeira Crente em ver a vida melhorar”. Como disse anteriormente, quis trazer o som da cachoeira para abrir o álbum remetendo a essa forca maior que é a natureza, a floresta, a água.  Também trouxe uma fala da Dona Neide, que é uma sambista popular de São Paulo. Ela tem 80 anos e está sempre no samba dançando. É uma referência de mulher pra mim. Os aniversários dela são incríveis, junta a família toda pra fazer samba e da. Então quis trazer também essa energia matriarcal, lembrando também que o tempo passa, tendo ela como uma referência temporal, e sua voz grave vivida “que a semana seja incrivelmente boa, apesar dos pesares”. Ah, é bom demais!

10) Em “Pipa Avoada”, temos uma atmosfera leve e talvez até nostálgica. Que história ou sensação você quis transmitir com essa faixa?

Essa faixa simboliza minha reconexão com meu passado evangélica, agora de um outro lugar. Por muito tempo tive dificuldades de olhar para este período da minha vida, pelas muitas restrições que me trouxe, pelas relações que deixei pra trás. Mas agora sou capaz de reconhecer as coisas boas e ruins dessa fase que foi tão intensa. Sou capaz de cantar com leveza esses versos “pelo sangue de Jesus”, com respeito e divertimento. E é curioso como cristãos e ateus se conectam com ela, provando que a música está acima dos muros da nossa razão.

11) “Todo Mundo Tá Ok” tem um título quase irônico nos tempos que vivemos. Como essa música surgiu e qual sua intenção por trás dessa mensagem?

Essa música foi composta numa mesa, eu e Sarah Roston falando e o Allan Gaia ouvindo e rindo. Foi a primeira vez que me propus a compor algo no estilo “putaria”. Quando dei a ideia do verso “passo a bunda na sua rola no meio do rolê” nós três rimos muito, fiquei insegura, ‘será que a gente fala isso mesmo?’, decidimos que sim, avançamos.  Ela foi a primeira música do álbum a ser lançada, ano passado, com um videoclipe gravado numa casa de shows maravilhosa que eu sempre canto, chamada “Funilaria” no bairro do Bixiga, em São Paulo. A ideia era retratar, quase documentalmente, o movimento louco de pegação generalizada que foi o pós-pandemia. Todo mundo tava ok de ver geral se pegando depois de passar dois anos trancado em casa. Foi uma onda de não-monogamia e beijação generalizada, a rua fervendo. E essa liberdade eu não tinha vivido até então por amarras que ficaram desde a época da igreja evangélica. Entendi então que eu não ia pro inferno por beijar demais.

12) De “Pesada” até aqui, sua trajetória vem se transformando junto com sua linguagem musical. O que mudou em você, como artista e como pessoa, ao longo desse caminho?

Meu primeiro EP é de 2017, já são 8 anos. Que bom que mudei bastante! Quando lancei este primeiro EP Pesada eu estava numa fase muito militante, vivia em manifestações de rua, então trazia um tom panfletário muito forte. Agora minhas militâncias estão mais sutis, mais nos micromovimentos. Nessa época eu namorava e trabalhava com o produtor musical Samuel Silva. Ele era bem mais experiente, ensinava-me muita coisa. De lá pra cá vim desenvolvendo minha própria percepção e produção musical. Já tinha baião e funk naquele primeiro trabalho, mas aqui estão com mais personalidade. Se em 2017 eu estava “Pesada” agora eu quero “LEVEZA”, inclusive tenho usado um óleo essencial com esse nome hehehe. Nesses 8 anos expandi minhas referências, cantei com várias delas, como a Lia de Itamaracá, me estruturei bem, trabalhando com grandes produtoras, mudei de casa, a música me sustenta, virei tia, aquela clássica transformação de menina para mulher. Clichê, mas é isso. Desabrochei. E sigo desabrochando!

13) O que te move artisticamente hoje? O que você sente que é urgente cantar?

Cantar me faz lembrar que a vida presta. Naquela hora do dia que o chão abre e o teto desaba, eu canto para encontrar meu eixo. Canto pra mim antes de cantar pros outros. Urgente hoje é cantar junto, presencialmente, encostando, abraçando, olhando no olho, saindo da tela um pouquinho.

14) O que podemos esperar dos próximos atos do álbum “Deusa Diaba da Terra do Sol”? Você pode dar algum spoiler?

Podem esperar músicas muito boas, que estão sendo testadas em shows e por isso estão muito maduras. Podem também esperar peças visuais lindas que produzimos na minha cidade, Mococa, com uma equipe maravilhosa. Não desgrudem!

15) Existe alguma colaboração dos sonhos que ainda está por vir nos próximos atos?

Sim! No próximo ato tem participação do glorioso coral USP. Eu cantei neste coral quando estava iniciando meus passos artísticos aqui em SP, e roda mundo roda gigante, agora o coral gravou uma participação lindíssima na faixa “Bem Pequenininha”, que é uma versão minha em português de uma música do Paul Simon.

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