https://abacus-market-onion.top Entrevista: Sheylli Caleffi, educadora e palestrante - Marramaque

Entrevista: Sheylli Caleffi, educadora e palestrante

1.    O que te motivou a transformar sua experiência e pesquisa em um livro de ficção como “Respire Fundo”?

O fato desse assunto ser urgente e das pessoas preferirem ficção. Nos meus vídeos eu falo diretamente com as pessoas e as histórias sempre ficam marcantes, elas muitas vezes ensinam mais que a explicação de conceitos. Eu queria poder chegar nas principais vítimas de crimes sexuais no digital, que são os adolescentes. Como crianças e adolescentes não têm dinheiro, na mão dos criminosos digitais eles viram um produto sexual que eles vão tentar comercializar. 

Também pensei em como muitos adolescentes não foram ensinados a gostar de ler e, por isso, os contos são curtos e dinâmicos. Mesmo os que não estão acostumados a leitura curtem o livro.

2.    Como os seis contos que compõem o livro foram selecionados e desenvolvidos?

Eu busquei trabalhar os crimes mais comuns que as pessoas, geralmente, não percebem, deixando em evidência os movimentos criminosos que podem indicar que aquela interação se tornará um problema. Então temos contos sobre namoro online, criação de conteúdo por adolescentes e crianças, uso de Inteligência Artificial para manipulação, chantagem por meio de conteúdo de família, a descoberta da sexualidade, grupos violentos que cooptam adolescentes, aliciamento em jogos e ação da polícia, além de refúgio em mundos virtuais quando a realidade é muito dolorosa. 

3.    Você acredita que a ficção pode ser uma ferramenta mais eficaz do que o conteúdo didático para abordar temas sensíveis como os perigos online? Dados alarmantes mostram o aumento de crimes cibernéticos envolvendo crianças. Como você espera que “Respire Fundo” ajude pais e educadores a lidar com essa realidade?

Histórias nos tornam humanos, é a primeira coisa que aprendemos por isso mesmo nos meus conteúdos didáticos eu busco sempre contar casos reais. Este livro pode ser lido e discutido em família e na sala de aula. Aliás, uma professora do Espírito Santo trabalhou os contos com seus alunos adolescentes e foi um sucesso. Com certeza todos estão mais preparados para reconhecer os riscos e tomar decisões mais saudáveis nos ambientes digitais. É uma maneira de pensar: Nossa, eu não quero que isso aconteça comigo nem com a minha família! E ao mesmo tempo: Que bom, eu não sabia e agora eu sei o que pode acontecer. A maioria deles se reconhece nos personagens ou já tiveram um amigo que viveu algo semelhante. Como muitos adultos não têm o ferramental para orientá-los, o livro pretende ajudar nessa tarefa, fazendo com que eles mesmos reflitam e se protejam, inclusive comecem a ter um olhar de proteção para as crianças menores da família que também aparecem nas histórias, muitas vezes copiando os irmãos maiores.

4.    Você menciona que atitudes aparentemente inocentes podem alimentar redes criminosas. Que exemplos do dia a dia são mais comuns e menos percebidos pelas pessoas?

1. Postagem de fotos de crianças e adolescentes nas redes sociais dos adultos. Ao compartilhar imagens de menores, mesmo que eles próprios não tenham redes sociais (afinal elas são recomendadas apenas para maiores de 13 anos e já existe uma discussão mundial para aumentar para 16) estamos colocando eles em risco. Essas fotos muitas vezes são roubadas por criminosos que podem usá-las para se passar por crianças e aliciar outras, ou para dizerem que conhecem e tem proximidade com a criança buscando aproximar-se dela ou da família. Infelizmente as redes são muito inseguras e sem regulações que protejam a infância. 2. Permitir que crianças tenham redes sociais. 3. Permitir que adolescentes tenham redes sociais públicas. 4. Não verificar a classificação indicativa de faixa etária em jogos. Não acompanhar a vida digital das crianças que nos jogos mais bobinhos podem ser aliciadas por criminosos. 

5.    Quais são as maiores dificuldades no combate aos crimes digitais contra crianças e adolescentes no Brasil?

Falta de legislação, interesse das autoridades e da população adulta. Muitos adultos não compreendem que suas experiências online são muito distintas das de crianças e adolescentes. Se um adolescente menino cria uma conta no X por exemplo ele recebe uma quantidade absurda de pornografia leve e violência. E assim acontece em muitas redes. Ao tempo em que TV e rádio recebem regulações, muitas plataformas digitais que atuam hoje como a TV com conteúdo infinito onde se rola o feed no lugar de trocar de canal não são responsabilizadas pelos crimes que acontecem ali, pelo contrário. Se algum criminoso cria um vídeo dizendo que um produto mentiroso cura o câncer, a plataforma recebe dinheiro para enviar esse vídeo para o público alvo dos criminosos: idosos que se interessam por temas de saúde, por exemplo. A propaganda voltada a crianças já está proibida há anos no país e é livremente realizada nas plataformas digitais. Nós adultos estamos viciados e temos medo de perder algo caso as redes sejam reguladas, o que é uma falácia. Para mim, a origem principal do problema é não considerarmos a criança como um ser humano de direitos e a partir daí a expomos a absurdos: vício, comparação, desafios… expomos sua imagem sem consentimento, expomos elas em situações vexatórias que jamais desaparecerão. 

6.    Como sua vivência pessoal e profissional moldou a narrativa de “Respire Fundo”?

Completamente. A raiva que eu tenho de conhecer uma crinaça de 8 anos que foi aliciada online, ou uma de 13 que teve as fotos e vídeos roubados por vendedores de pornografia, ou de conversar com a mãe de uma menina de 4 anos que teve todas as fotos roubadas de seu perfil de adulta por um criminoso condenado por estuprar crianças, ou ainda de conversar com familiares que tiveram seus filhos violentados sexualmente por crianças viciadas em pornografia… Olha… Tudo isso me moldou porque se somam ao fato de eu ter sido vítima de violência sexual na infância. Eu sei que ninguém merece passar por algo assim e acredito que podemos juntos mudar esse cenário. Nem que seja na base da ira!

7.    O grupo de apoio que você coordena, “As incríveis mulheres que vão morrer duas vezes”, influenciou de alguma forma a criação do livro?

Sim, porque a maioria das mais de 4 mil mulheres que fazem parte dele foram violentadas na infância e, a partir do digital, os criminosos ganharam muita força, eles falam com dezenas e até centenas de crianças simultaneamente. E não importa se o crime é presencial ou online, o trauma está lá e vai implicar a vida da vítima e de muitas pessoas que convivem com ela. Uma pessoa violentada impacta a vida de ao menos outras quatros que convivem diretamente com ela, SE  ela sobreviver e também se for morta na violência ou morrer por suicídio. Temos em média 6 em cada 10 brasileiras vítimas de violência sexual durante a vida, ou seja, todos nós sofremos consequências da violência sexual. 

8.    Além dos perigos online, você explora temas como sexualidade, isolamento social e ansiedade. Como essas questões foram integradas à narrativa do livro?

A violência sexual é uma face da violência. Quando alguém comete violência sexual, está desrespeitando e violando a intimidade de uma pessoa. Quando alguém bate em uma criança ou em um adulto está desrespeitando e violando a intimidade da pessoa.  Quando alguém xinga outra pessoa está desrespeitando e violando a intimidade dela, como no cyberbullying. Então é inevitável que violências se somem, inclusive a violência doméstica. E todas elas acionam nossos sentimentos nos causando ansiedade, medo e angústia. Por isso, esses temas estão no livro, porque o mundo presencial e virtual não podem mais ser separados e tudo estará entrelaçado nos nossos sentimentos e sensações.  

9.    Quais lições ou reflexões você espera que jovens leitores e seus responsáveis tirem ao ler “Respire Fundo”?

Espero que eles compreendam que o que acontece no digital tem consequências reais, que podem ser devastadoras e que aprendam a se proteger delas.

10.  Para pais e educadores que ainda não compreendem a gravidade do tema, qual seria o primeiro passo para proteger as crianças no ambiente digital?

Conversar com elas e estudar o tema. Reconhecendo que não sabemos e buscando soluções em conjunto, especialmente, com os adolescentes. Com as crianças é fundamental seguir as orientações de pesquisadores e cientistas que já se debruçaram sobre o cérebro infantil e comprovam que o uso de smartphones antes dos 14 anos prejudica drasticamente a saúde mental. Não estou falando de ver um vídeo específico na netflix ou conversar com os avós por vídeo no whatsapp, isso é até positivo, cria vínculo. O complicado são as redes sociais e os jogos com todo tipo de conteúdo adulto e criminosos nos acessando livremente. Precisamos acompanhar a vida digital deles e demonstrar interesse genuíno. Sem menosprezar os sentimentos que acontecem a partir dela. Lembre-se sempre: se nós adultos caímos em golpes e temos dificuldade de identificar algumas notícias falsas, imagine alguém em formação?

11.  Como você enxerga o papel da escola e da comunidade na conscientização sobre segurança online?

Fundamental. Não adianta estarmos apenas nas redes com nosso ativismo, precisamos da comunidade consciente e agindo para o melhor interesse das crianças e adolescentes. Especialmente a escola é o local mais frutífero onde podemos compartilhar e criar conhecimento. 

12.  Você já tem planos para outros projetos ou livros que continuem abordando temas relacionados à segurança online e violência?

Já estou escrevendo a sequência do Respire Fundo, quero que seja uma série com várias ideias que estimulem o estudo mais aprofundado dos temas e a conscientização sobre os ambientes digitais.

13.  Quais são seus próximos passos como ativista e educadora nessa luta contra a violência sexual e os perigos das redes sociais?

Com palestras e atividades para crianças, adolescentes, educadores e famílias, vou continuar educando o máximo de pessoas possível, apoiar outros ativistas nesses temas e auxiliar na criação de uma conscientização social para que possamos compreender a necessidade de leis, solicitando aos políticos que defendam os interesses das crianças e das famílias.