Entrevista: Devanir Merengué, psicólogo e escritor

1. Devanir, seu livro aborda a relação entre os sonhos e o neoliberalismo. Como você chegou à conclusão de que os sonhos podem ser vistos como uma forma de resistência política?
Antes de mais nada, penso ter sido a prática clínica exercida durante muitos anos que me fez atentar para esses aspectos. No exercício dessa prática foi possível observar sonhos que se referiam às questões mais amplas da realidade. Isso foi muito contundente durante os anos 20-21, quando a pandemia estava no auge. É preciso dizer que esse entendimento não é algo original, pois muitos estudiosos registram sonhos que, de algum modo, atentam para o fato. Um livro especialmente importante foi Sonhos no Terceiro Reich, escrito por Charlotte Beradt (Fósforo Editora). A jornalista recolhe sonhos durante o período nazista que, alguns anos depois, deixavam evidentes os temores e questões políticas importantes para judeus e não judeus.
2. Você mencionou que a psicodramatização busca saídas no imaginário. Pode explicar como isso se relaciona com a ideia de resistência aos conceitos do neoliberalismo?
Assim como nas artes, o Psicodrama busca as inúmeras possibilidades que o imaginário possibilita. Nesse sentido, indivíduos e situações ampliam modos de existência, podem compreender que as soluções não são únicas e duras. O neoliberalismo, por sua vez, possui uma cartilha bastante estreita: o foco está no indivíduo (jamais no coletivo), na meritocracia (para todo e qualquer indivíduo), a solução é, necessariamente, uma saída econômica (‘chegar lá’ é ficar rico). Existe uma espécie de fábrica do sujeito neoliberal que pode ser contraposta ao sujeito do imaginário que é, muitas vezes, desconhecido até por aquele que sonha.
3. O que diferencia sua abordagem sobre os sonhos do que normalmente é encontrado na literatura de autoajuda?
A literatura de autoajuda se dirige basicamente ao indivíduo: “você pode, se você quiser”. Nunca vi autoajuda que diga, “vocês coletivamente, podem”. Nesse sentido, autoajuda e neoliberalismo fazem uma conexão incrível. Como tantas outras experiências contemporâneas são uma espécie de soft power. A autoajuda apela para um voluntarismo, algo consciente e racional. Já os sonhos transitam, tantas vezes, pelo inconsciente. Apresentam certo desprezo pelas saídas convencionais, ditadas pelos bons costumes, pelas práticas tidas como corretas.
4. O livro também parece abordar questões éticas e morais presentes nos sonhos. Como esses aspectos se entrelaçam com a resistência política?
Retomo conceitos do pensamento de Michel Foucault para discutir a ética nos sonhos. Para o filósofo, os indivíduos são assujeitados pelas relações de poder e de saber. A resistência política diz respeito justamente à compreensão do processo de assujeitamento, visando compreender o presente e, com isso, buscar o dessasujeitamento. A ética desconstrói a moral imposta pelos poderes. Esse movimento pode ser compreendido como uma resistência porque é crítica, põe em questão as verdades de uma sociedade.
5. Devanir, você mencionou que os sonhos são uma espécie de resistência ao universo controlador do neoliberalismo. Como isso se manifesta na prática, tanto individualmente quanto coletivamente?
O neoliberalismo tem uma cartilha muito evidente e fácil, como eu disse anteriormente. As redes sociais são braços potentes dessa cartilha: infinitas imagens do indivíduo, um suposto selfie forte revelado através de muitas atividades e poses. Sonhos que desmontam essa verdade, a verdade de que somos isso e aquilo. Os sonhos são irônicos, brincalhões, assustadores, irritantes. Costumam desmontar todas essas verdades neoliberais que não deixam de ter um caráter fortemente normativo (faça isso, desenvolva aqui, coma assim, faça ginástica). Exemplo: um homem adulto se vê em um sonho como um adolescente bobo. A imagem o deixa chocado, mas conclui que se comporta, muitas vezes, do modo revelado no sonho.
6. Como você acha que seu livro pode contribuir para o avanço dos estudos sobre os sonhos, especialmente em tempos tão turbulentos como os que vivemos atualmente?
Como se dissesse: antes de acreditar em livros de autoajuda, gurus, influencers (!!!!), religiões etc, fiquem atentos aos seus sonhos. Suponho que sejam bem mais confiáveis, sem serem normatizadores. Sugerem sem ser impositivos, indicam verdades pontuais e provisórias. E, por isso, constroem uma ética, um modo de existir em diálogo com a realidade, sem alheamento, mas também sem alienação.
7. Você mencionou que seu livro pode ser útil para leigos no assunto, mas também para terapeutas. Como você espera que ambos os públicos recebam suas ideias?
Seria muito bom que atingissem os leigos e que buscassem em si mesmos essas respostas. Esse caminho, bem sabemos, é desejável desde os gregos antigos, no conhecido conhece a ti mesmo e no cuidado de si. Quanto aos terapeutas, frequentemente estão lastreados em suas teorias sobre o tema. Questiono como seria possível um diálogo produtivo sobre as diferentes compreensões e práticas sobre o assunto.
8. Em sua opinião, qual é o papel do psicodramatista na sociedade contemporânea, especialmente considerando o contexto do neoliberalismo?
Somos resultado de nosso tempo e não parece inadequado dizer que estamos mergulhados no neoliberalismo como peixes dentro d’água. Uma espécie de corrente que toma corpos e mentes e que funciona estruturalmente, assim como o Ocidente é cristão, professemos ou não a crença. A probabilidade das teorias e práticas do Psicodrama (e das ciências de modo geral) estarem bastante neoliberazidas é grande. Por isso, o papel do psicodramatista é, antes de tudo, crítica de sua própria prática.
9. Você mencionou Michel Foucault como uma influência em seu trabalho. Como suas ideias são aplicadas no contexto dos sonhos e da resistência política?
Michel Foucault é um filósofo que responde a muitas questões da contemporaneidade sem ter ainda conhecimento do que seria o século 21, bem mais neoliberal que o século 20, com redes sociais construindo pós-verdades, fake news, foco no individualismo exacerbado, desprezo pelas saídas coletivas. Conceitos como Sujeito, Relações de Poder e Saber, e a preocupação com a História, ao meu ver, facilitam contrapor os sonhos no diálogo com a realidade. Os sonhos, é preciso dizer, não estão separados da realidade, mas em constante diálogo com nossas questões concretas. Falam dos medos, da busca pela realização de desejos, dos próprios desejos negados conscientemente, do mundo que nos cercam, das relações pessoais, das instituições. Tudo isso tem um caráter político, em um sentido amplo.
10. Como você acha que os leitores podem usar as ideias apresentadas em seu livro para criar mudanças significativas em suas vidas e na sociedade em geral?
Leitores que desejam autonomia, estarem livres de comandos, regras, protocolos podem ser beneficiados. Não creio que facilitará a vida de quem busca um guia para a vida, no sentido de apresentar normas para o bem-viver. A ideia principal é: olhe para você com cuidado. Talvez isso facilite sua relação consigo próprio e com o mundo. Sem tanta certeza assim. Os antigos gregos faziam recomendações e os indivíduos examinam a validade. É exatamente essa a minha pretensão.
11. Devanir, você acha que os sonhos podem ser interpretados literalmente, como previsões do futuro?
As “previsões do futuro” estão frequentemente presentes no momento atual, como no citado livro sobre os sonhos dos alemães no período nazista. Quem sonha, muitas vezes se espanta com a “previsão”. E frequentemente são, de fato, pré-visão que toda pessoa intuitiva conhece: nenhuma certeza, mas algo indica que… Não passa exatamente pelo consciente, mas está ali, de forma embrionária, como um esboço para algo que poderá ou não se concretizar no futuro.
12. Algumas pessoas argumentariam que o neoliberalismo trouxe benefícios para a sociedade. Como você responderia a essas críticas em relação à sua abordagem?
De fato, o neoliberalismo vigente não existe tão de graça. Se conseguiu se impor, deve interessar aos indivíduos e grupos. Talvez o principal chamamento seja a ideia de que o indivíduo, por si só, consiga fazer o que quiser e atingir metas econômicas. Essa promessa de independência se contrapõe marcadamente a um posicionamento mais à esquerda, que busca saídas comunitárias e coletivas que, frente ao pensamento neoliberal, encontram-se fora de moda. As saídas individuais e individualistas são exaltadas como heroicas: a pessoa saiu da favela e virou um empresário. A exceção pode ser verdade, mas funciona como regra. Algo na linha: se ele pode, você pode! E se não conseguiu, é porque não lutou o suficiente. O neoliberalismo separa vencedores e “vagabundos”. A pregação de um Estado Mínimo revela-se bem pouco eficiente em muitas situações que nós, brasileiros, conhecemos bem como a necessidade da vacina na covid-19 e os agravamentos sociais em função das mudanças climáticas. A necessidade da presença do Estado é evidente. Com isso, não existe uma aprovação do Estado ineficiente e gastador, mas negar a importância das políticas públicas em um país desigual como o Brasil chega a ser delirante. O neoliberalismo interessa, sobremaneira, às elites econômicas e nos regimes autoritários. Para isso, se fez e se faz necessário fabricar um Sujeito Neoliberal que acredite nesse pensamento que, na minha opinião, é uma quase seita, como tantos outros pensamentos pseudo-libertários.
13. Devanir, você já teve algum sonho que o inspirou diretamente em seu trabalho como psicodramatista?
Tenho grande inspiração nas artes, mais marcadamente no cinema e na literatura desde a infância. Sempre entendi, assim como tantos outros estudiosos e artistas, que os sonhos e a produção artística se alimentam do imaginário que, por sua vez, vive em tensão com a realidade. Inúmeros sonhos lidando com a diferença, com situações desconfortáveis sempre me ajudaram no papel de psicodramatista, com o improviso, com o inusitado da realidade.
14. Devanir, o que o levou a se interessar pela relação entre psicodrama e sonhos dentro do contexto do neoliberalismo?
Desde a graduação tenho grande interesse pela política. No meu caso, não necessariamente pela política partidária, mas pelas macro e micropolíticas em sentido amplo, como busca de entendimento das relações da polis, no sentido do grego antigo. Ou seja, como a relação da mulher com seu marido reflete questões da macropolítica, assim como o racismo e todas as formas de opressões, especialmente as menos óbvias. A clínica psicodramática lida com a micropolítica cotidianamente e, dentro dela, o relato de sonhos. Buscar essas conexões com o neoliberalismo foi um passo.
15. Você poderia compartilhar uma experiência particularmente impactante que teve ao trabalhar com pacientes em relação aos seus sonhos?
Relato no livro alguns sonhos pessoais e de pacientes particularmente reveladores e que produziram mudanças sutis ou intensas nas vidas, na minha e na deles. Sonhos, por exemplo, sobre adoção não revelada pelos pais aos filhos e que os sonhos, sorrateiramente, insinuavam. Ou um sonho pessoal indicando que eu estava investindo em amizades improváveis e que, de fato, trouxeram dolorosas decepções.
16. Como sua formação na USP influenciou sua abordagem à psicologia e ao psicodrama?
Na verdade, estudei na UNESP-Assis nos estertores da ditadura militar. Ou seja, sou de uma geração que passou parte da infância e toda a adolescência mergulhadas em um regime de exceção, o que deixou marcas consideráveis sobre a minha existência. A formação transitou entre um conservadorismo medroso e a busca por ares mais libertários. Nesse sentido, o Psicodrama aparecia como alinhado às artes, ao teatro, à contracultura, ao desejo de mudanças, de ares mais respiráveis.